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planetamarcia

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Dezembro 29, 2019

"Açúcar", um Conto de Natal

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«Não há açúcar, vou sair para comprar!» — foi a última vez que se ouviu a voz de Isabel em casa. Noite de Natal. Ano 2008.

Isaura parada no corredor com os olhos na porta da entrada, as mãos desenhadas com farinha na frente do avental cinzento. O aroma a fritos escapa da cozinha, enchendo a casa de Natal.

O estalido da fechadura ainda nos seus ouvidos, onze anos depois.

 

As duas irmãs sempre viveram juntas. A casa é pequena, apenas um quarto, apenas uma cama, o regresso ao útero todas as noites, quem sabe ao óvulo que as concebeu iguais.

Isabel e Isaura, gémeas verdadeiras desde os caracóis negros até aos joanetes nos pés direitos. Dois pés estragados, mais valia ser nos dois pés do mesmo corpo, pensamentos de mãe durante o banho das meninas, na infância distante. Dois corpinhos idênticos ensaboados com amor. Dois pezitos com os dedos tortos fora da banheira cor-de-rosa.

Não há maçã que, cortada ao meio, se mantenha sã. Tal como a fruta separada em duas metades, Isaura sobreviveu com dificuldade apartada do pedaço que a completa. Mais de uma década a ser meia pessoa atrai toda a espécie de maleitas, desde febres persistentes a insónias, tosses eternas e reumatismo. Para as combater faz defumação aos domingos: um pote com ervas a arder nas mãos enluvadas, e a ladainha a marcar o ritmo da caminhada repetitiva, cozinha-sala-quarto-casa-de-banho-cozinha, sempre, até o fumo se extinguir.

Todos os Natais a mesma esperança no regresso. O mesmo avental cinzento por cima do vestido novo, comprado para a ocasião. O açucareiro pousado na bancada da cozinha, aguardando, como ela, que tudo volte ao que era antes. Na sala, sentada muito direita à mesa posta, bate o pé do joanete ao compasso das melodias natalícias que se obriga a ouvir ininterruptamente. Rotinas que foi criando e resiste em largar. A cada ano a expectativa mais elevada no regresso de Isabel fazem-na adicionar novos hábitos ao rol, como a confecção de todas as receitas sem açúcar, um simbolismo da sua incompletude e, ao mesmo tempo, da fé no regresso da irmã a tempo de adoçar os bolos. A cada meia-noite em que tudo permanece igual, atira com as iguarias para o lixo e o açucareiro regressa ao seu lugar no armário por mais um ano. Ela enfia-se na cama. Chora em posição fetal, o polegar na boca, os olhos fechados com muita força, como se isso pudesse fazê-la recuar no tempo e impedir o desaparecimento da irmã.

Isaura não tem forças para sair da cama. É véspera de Natal outra vez: o marco anual da esperança e da desilusão. Enrola-se no seu próprio corpo sob o edredon.

É uma ave com a cabeça debaixo da asa.

Tem um buraco no peito feito de melancolia.

 

Já é noite quando sai da cama. Decidira passar o Natal a dormir, está cansada de esperar por Isabel, todos os anos se dedica com amor aos preparativos natalícios na expectativa do seu regresso. Ajusta a fita do roupão à cintura e mete os pés dentro dos chinelos. Lá fora, uma chuva silenciosa desce pelas janelas em rios, distorcendo as luzes da cidade.

Percorre a despensa com o olhar e abre alguns frascos apenas para sentir o aroma do conteúdo. Os de melhor qualidade libertam odores mais intensos, de tal modo que o pequeno espaço é, por instantes, Índia. Coloca o avental cinzento por cima do roupão, é o primeiro ano que prescinde da indumentária cuidada.

 Pousa os ingredientes na bancada, unta a forma de chaminé, e começa a preparar um bolo sem açúcar. O açucareiro vazio está guardado no armário de sempre, Isaura abre a porta de vidro e fita-o como se o recipiente pudesse ter utilidade além de proteger o que se mete lá dentro. Nisto, o açucareiro ganha voz e faz perguntas sobre a mesa vazia, assim como exige saber porque é que este ano não há enfeites nem música. E «onde está o vestido novo?»

Ela, atónita, sussurra «já não vale a pena».

Fecha a porta com força, que se desfaz em pedaços, vidros pelo chão. Leva as mãos no rosto, olha em redor como se pudesse estar alguém a assistir. «Quão louca tenho de estar para falar com objectos?», reflecte.

Arruma o avental e procura os comprimidos para dormir na gaveta dos remédios. Toma dois com um longo gole de água e mete-se na cama de roupão vestido. Cede ao peso das pálpebras e deixa que uma onda de vazio lhe apague os pensamentos. Ressona.

Onze anos depois, o estalido na fechadura. Isabel em casa, segurando a embalagem de açúcar. Isaura dorme, mas o instinto leva-a a aninhar-se na irmã assim que esta se deita na cama. Regresso ao útero.

«Comprei açúcar amarelo, como tu gostas.» — segreda Isabel.

Voltou a ser Natal e Isaura não deu por isso.

 

Este conto foi escrito por mim, para o catálogo de Natal (2019) da Editora Almedina, «Ler é o melhor presente»

Outubro 30, 2019

"É a vida Alvim", dia 31 de Outubro à meia-noite

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Gente, passei por aqui só para dizer que amanhã (31/10) estarei no programa "É a vida Alvim" (Canal Q) a falar sobre o meu livro, "Voar no quarto escuro". É à meia-noite e estaremos (os meus colegas convidados têm um projecto de teatro que vocês têm mesmo de conhecer) no ar depois do intervalo.

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Se a coisa não tiver ficado muito má, partilho o vídeo depois.

Espero ter um tempinho em breve para vir aqui partilhar mais coisas giras. E livros, apesar de as leituras estarem a passo de caracol.

Setembro 24, 2019

Voar, voar, voar

Eu sei, eu sei, estou a exagerar, sempre a falar do livro, a anunciar o lançamento, a mostrar fotos, a correr o risco de entediar quem aqui vem em busca de opiniões de (outras) leituras. Eu prometo que vou tentar refrear esta vontade de dizer ao mundo que escrevi um livro, juro, mas antes disso quero agradecer aos bloggers, influencers, acima de tudo amigos que, no meu coração, nunca passarão de moda. Obrigada por me deixarem voar nos vossos espaços virtuais (para mim) eternos. Vou deixar os links das opiniões que foram publicadas, para que, não só as leiam, mas (principalmente) para que conheçam (os mais distraídos) e divulguem tão interessantes sítios literários.

Mas antes um agradecimento especial ao Gil pelas fotografias do lançamento, e pela conjugação que resultou no "vídeo" partilhado acima.

Efeito dos Livros

Ler por aí

O tempo entre os meus livros

Livros que são amigos

Stoneartbooks

Jardim de mil histórias

Roda dos Livros

Agosto 28, 2019

"Voar no Quarto Escuro" finalmente nas livrarias

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O meu romance, "Voar no Quarto Escuro", estará disponível nas livrarias a partir de amanhã.

Gostava de vos contar tudo o que este livro tem dentro, muito dele está dentro de mim, ainda. Segue amanhã para junto de vós, se o quiserem acolher. Eu desejo-lhe um bom voo, não num quarto escuro, mas sim na direção de estantes aconchegadas. Que mesmo sendo (por vezes) tão negro, vos ilumine.

A ilustração da capa (Ana Aragão) é muito mais do que eu julguei alguma vez poder ter na capa do meu livro, sou uma sortuda na era das capas "banco de imagem". Agradeço à minha editora, Sara Lutas (Minotauro) por a ter encontrado e conseguido para mim/nós.

Obrigada a quem, a meu pedido, leu o meu trabalho antes de ser publicado. Eu estava aterrorizada, mas vocês deram-me tanta confiança. Bem-hajam.

Quem o vir a voar por aí, vá dando notícias. Fotos são bem vindas. Opiniões de leitura também. Procurem-no, perguntem por ele se não o virem exposto. Não é uma pena que um livro dure menos de três meses numa livraria?

E tantos são os que duram uma vida na nossa cabeça.

https://www.almedina.net/voar-no-quarto-escuro-1566313426.html

Foto: Olga Lopes