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planetamarcia

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Outubro 16, 2016

Eu Sou a Árvore - Possidónio Cachapa - Opinião

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“Todas as Árvores caminham sobre o Tempo, sobre a passagem das estações, porque nenhum outro movimento lhes resta. Existem, simplesmente, dividindo-se entre o corpo visível que se estende à luz e o corpo inferior que vive de forma encoberta.

Os seus frutos, contudo, são esperanças perdidas, Verão após Verão. Imagens do desejo de poder ser mais do que braços a estender-se ao céu, ao vento, à impiedade dos pássaros. Da vontade que todo o corpo, o poderoso corpo, pudesse sair da terra, com duas pernas móveis, e a fizesse estremecer de medo quando uma delas voltasse a pousar na superfície.

“Toma os meus frutos, com os meus filhos dentro, que são eu, na forma primitiva, e faz de mim um ser que corre”, pedem as árvores aos deuses, na sua súplica.” (Pág. 15).

Fica-me, de alguma forma, pouco para dizer depois da leitura de Eu Sou a Árvore. É um livro forte, muito bem estruturado e com personagens intensas, humanas, cheias de lugares sombrios visitadas por alguns rasgos de luz.

Os anos passam por Samuel e pela sua família. A mulher Jude e os três filhos seguem o sonho do homem que deseja viver da terra. Deixam a cidade e permitem que o campo lhes molde os passos e condicione as decisões. Mais do que falar ou escrever sobre este livro, guardo as reflexões a que me obriga o percurso das personagens. O amor será sempre suficiente para seguir os sonhos do nosso par, mesmo que os nossos não sejam compatíveis e tenham de ficar, necessariamente, para trás? Ou poderemos tornar nossos os sonhos do outro? Como se pode viver sem haver lugar para os nossos desejos?

Pode o próprio Samuel, que vive as suas escolhas, ser plenamente feliz com uma família que o segue, mas não partilha dos seus entusiasmos? E poderá este grupo, esta família, manter a coesão ao longo dos anos? Ou, ao contrário, irá delapidar-se nos silêncios do que fica por dizer (mas não por sentir)?

Os anos cruzam-se ao longo das páginas, como se o passado e o futuro fossem pistas. Não para adivinhar o final, mas para pensar, refletir muito, quer o livro esteja aberto durante a leitura, quer esteja fechado e não nos liberte os pensamentos.

A força de Samuel fica. Persiste. Não cede a ventos ou temporais. É como a árvore que não sai do lugar, com o bom e o mau que essa determinação pode trazer. Porque os homens não são árvores. E só podem abrigar junto a si quem quer viver o mesmo sonho.

Eu Sou a Árvore é realista e por vezes cruel. Eu diria mesmo que é incómodo, que choca e que revolta. Mas é construído na medida certa, com a ponderação inteligente de quem sabe dosear o horror e a beleza, a violência e a ternura, a subtileza e o pragmatismo.

Um livro que permanece.

Sinopse

“Entre os homens e as árvores há tanto em comum que por vezes não se sabe onde começam uns e acabam outros.

Samuel acredita que lhe basta um solo fértil para ser feliz e, sendo-o, permitir que todos o sejam tanto como ele. Mas mulher sonha longe, os filhos guardam segredos, e a força brutal dos seus gestos de patriarca deixa marcas inesperadas naqueles que ama.

No seu esperado regresso ao romance, Possidónio Cachapa colhe um livro onde a Natureza e o Homem vivem misturados, moldando-se e afeiçoando-se mutuamente, enquanto o tempo se some como um carreiro de água em terra seca.”

Companhia das Letras, 2016

Agosto 02, 2016

Materna Doçura - Possidónio Cachapa - Opinião

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Li Materna Doçura no fim-de-semana. Poderia tê-lo lido apenas no sábado, pois é daqueles livros que não apetece largar e que se lê com um prazer constante, que não esmorece.

Apesar de me ter sido muito recomendado eu não sabia nada sobre o livro. A capa e o título não me suscitaram especial interesse, e acabei por tirá-lo da estante um pouco por acaso. Li algures que vai ser adaptado ao cinema e talvez tenha sido esse o impulso que me fez abrir a primeira página. E depois disso sentei-me confortável para saber tudo sobre Sacha, que é apresentado, logo no primeiro capítulo, como um adulto recém-chegado à prisão.

Sacha é o fio condutor desta narrativa. Todas as personagens vão, inevitavelmente, movimentar-se na sua esfera, e fazer as suas histórias parte da história dele. O autor joga muito com o acaso, ou talvez com o que nos queira fazer julgar acaso, como o encontro que Sacha tem, em criança, com o Professor. O encontro destas personagens centrais é fundamental pois, mais tarde, quando cada um deles achar que nada lhes resta, contarão um com o outro. Nenhum substituirá o amor maternal para sempre perdido (para ambos), mas serão o que mais próximo se poderá considerar uma família.

Esta será uma abordagem muito superficial de uma relação que poderia ser a de um pai e de um filho, mas que na verdade nunca o é. Não sei que laços pode criar a ausência e a saudade, mas haverá entre eles a compreensão mutua de quem partilha a dor do amor incondicional interrompido. Ambos perderam as mães.

Esta é a premissa. O resto são surpresas. E Materna Doçura reserva muitas reviravoltas surpreendentes, algumas mesmo inacreditáveis, que me foram fazendo arregalar os olhos e suspirar “não é possível”. Mas é. Neste livro não há impossíveis e eu adorei viver nessa deliciosa ficção de acreditar piamente no inacreditável.

É uma homenagem incrível ao amor. O das mães, pois claro. Para a materna doçura não há sexo ou idade, está para além da vida ou da morte, e chega até nós através deste livro extraordinário sem nunca (mas nunca) cair na pieguice. E isso é obra. É obra tratar um tema bonito, que mexe com emoções profundas, sem resvalar para a lamechice ou provocar a lágrima fácil.

Materna Doçura provoca sorrisos. Muitos. É uma beleza. Leiam-no!

Sinopse

“Ninguém sai ileso de um grande amor. Ou da falta dele. Esta é uma história de fronteiras. E de reencontros. Os homens têm coração de mulher. Deixam-se amar em silêncio. As mulheres têm força de homens. São elas que mais fazem avançar a acção. A materna doçura não precisa de cédula nem de parto. A grande mãe preta e o irredimível solteirão amam os filhos que não tiveram. Este romance faz-se com um infinito «M» de mãe. Numa escrita viciante e cheia de surpresas, a língua portuguesa funciona como chave de «reconhecimento» entre personagens supostamente estranhas. Ninguém diga que conhece a última geração de ficcionistas portugueses se não tiver lido e relido este livro.”

Oficina do Livro, 2004

Março 21, 2015

Viagem ao Coração dos Pássaros - Possidónio Cachapa - Opinião

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A sensação que tenho no final desta leitura é que tudo se tratou de um sonho. Que este livro de letras grandes, lido de um fôlego, é uma porta para uma ilha que fica algures depois das nuvens, longe de tudo o que é real. Não é um conto de fadas, nem mete bruxas, pelo menos daquelas de varinha mágica e com caldeirões de feitiços, mas é um passeio no limiar da magia, com personagens que sinto terem sido criadas com generosidade e amor.

Um livro estranho, que não se entranhou mas agradou, com anjos e almas penadas, com seres escolhidos, uma menina eleita para curar e matar, com poderes maiores do que ela.

Kika, a menina visitada pelo anjo ainda na barriga da mãe, que comunica sem falar, que trouxe silêncio a um livro que conta tantas estórias. O silêncio, que eu adoro, que eu aproveito quando o consigo, que me faz pensar melhor, sentir melhor, ler melhor. O silêncio deste livro fez-me escutar melhor todas as suas vozes.

“E natural não era, porque natural, para ele, era partir e esquadrinhar o horizonte até que o ouro e o açúcar lhe escorressem para o colo sem esforço. E, de imagem em imagem, construiu um país, em que as paredes eram altas – quase como a igreja – e as pessoas só faziam o que queriam. Nesse país tinha-se tudo, bastando desejar. E quem não quisesse trabalhar não precisaria, porque as paredes tinham no seu interior tudo o que uma pessoa quisesse. E tantas eram as salas que davam para o descanso de uma vida inteira.” (Pág. 25)

Sinopse

“Viagem ao Coração dos Pássaros remete-nos para um universo único mas que se repete sempre no tempo dos seres humanos. Fala-nos das contradições e dialéctica do mundo, do amor, da vida, mas também dos seus opostos.
É um livro que se lê num sopro, como se fosse um instante, numa viagem que o leitor faz ao coração, o seu próprio, e o dos protagonistas da história, realista, autêntica e bela.
Possidónio Cachapa conduz-nos através da sua escrita profunda, revelando-nos os dons que todos temos e as nossas virtudes mas também as nossas debilidades e fraquezas, numa simplicidade narrativa que nos prende da primeira à última página.”

Marcador, 2015