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Tenho o hábito de começar a ler vários livros ao mesmo tempo. Não me incomoda começar um livro sem ter terminado outro(s), acho mesmo que é uma forma de fazer uma triagem. Há os que me levam a lê-los até ao fim e há os que ficam pelo caminho.
Curiosamente, e por estar a gostar tanto de uma das leituras que tinha em curso, no dia em que este livro chegou até mim, decidi (achava eu) que lhe pegaria quando terminasse o outro. Mas apenas por curiosidade (ou fraqueza) decidi ler o prefácio. Enfim, mais duas páginas da introdução não fariam mal nenhum. Dei uma olhada no primeiro capítulo só para ver como começava a coisa. Quando me apercebi o primeiro capítulo estava lido. Mantive, mesmo assim a decisão de o guardar para mais tarde, até porque o primeiro capítulo me foi um pouco doloroso de ler. Ou seja, refreei-me para não passar a noite agarrada ao livro (sim, gosto de leituras dolorosas), de modo a poder dedicar-me, no dia seguinte, a coisas mundanas, como trabalhar.
Mas o bichinho ficou lá. O Javier Cercas que me perdoe.
Acompanhei os ciclos deste livro na altura em que aconteceram, através das redes sociais. Nunca consegui tecer comentários. Confesso que a exposição do Paulo sempre me impressionou. Não sei se lhe chame coragem ou loucura, mas fiquei sempre com uma sensação estranha de me estar a intrometer em algo muito pessoal. Não acho bem nem mal, simplesmente sentia algum desconforto por ler coisas demasiado íntimas. Mas acompanhei. E preocupei-me. Nunca entendi o que o levou a tal exposição. Este livro ajudou-me a perceber.
Bom, mas para quem não sabe nada sobre o livro nem leu os posts (haverá alguém?), este é o percurso de um homem a quem foi diagnosticado um linfoma (grande e agressivo). É o relato dos oito ciclos de quimioterapia. É uma profunda reflexão de vida que vai muito para além da doença, mas que, se calhar, foi possível porque uma série de acontecimentos (incluindo este terrível diagnóstico) proporcionaram essa viagem, não de descoberta, mas talvez, de aceitação.
Ficam já a saber que o livro não é nada lamechas nem propício a choradeiras. Não terá leitores pelo apelo ao sentimento, mas sim pelo racionalismo com que expõe os factos de uma vida em forma de viagem. Sim, profundas viagens ao passado. Algumas até à infância, numa busca de causas ou motivos para ser como é. Outras mais próximas, já na vida adulta, a mesma procura de respostas. Também não é um livro de auto-ajuda. Não aponta o certo nem o errado, nem pretende defender teorias.
É uma descoberta e é a partilha dessa descoberta. É um relato sem medo e de uma lucidez admirável, que se lê de uma penada. Com a sua escrita limpa e fluída o Paulo levou-me rapidamente até à última página, obrigando-me, com a sua acutilância e capacidade de levantar questões, a pensar no meu próprio percurso, a questionar, como ele, o significado que as grandes mudanças (as que aparecem de surpresa e que não escolhemos) podem ter naquilo que somos ou iremos ser.
Profundamente libertador por mostrar com a mesma sinceridade a tristeza e a felicidade, é um livro honesto que se dá a ler sem se preocupar que gostem dele. Exige de quem lê, mas dá em troca, dá muito, eu senti-me claramente a ganhar pelo que ficou comigo depois de o ler.
Impressionou-me a capacidade de resiliência. Ficam comigo os momentos de grande ternura entre pai e filha, a chegada do amor da Isabel, a avó Nana, e a forma carinhosa com que o Paulo se refere aos amigos. E os livros claro, que não há melhor que ter um cancro para se receber pilhas de livros. Não sei se referi o humor negro… uma especialidade!
É um livro de uma luz intensa. Leiam-no!
Sinopse
“Em meia dúzia de meses, Paulo M. Morais ficou sem trabalho, terminou um relacionamento de doze anos e viu-se obrigado a vender a casa. Embora derrotado pelas circunstâncias, queria estar à altura dessa nova etapa de vida e concentrou-se na missão de cuidar da filha pequena e reatar os laços com a avó centenária que o criara. Sobreveio, então, um estranho cansaço, uma exaustão que a médica de família inicialmente atribuiu às pressões de um ano atípico. Podia ser. E, porém, depois de vários sustos e vinte horas nas Urgências do hospital, a verdade veio ao de cima: tinha um linfoma.
Durante o tratamento de oito ciclos de quimioterapia, começou a escrever sobre a sua experiência.
Mas este livro, embora inclua dados sobre os exames, os internamentos ou os efeitos secundários da medicação, está longe de ser um diário da doença; é, antes, uma reflexão magistral sobre a condição humana, escrita com a beleza e a cadência de um romance no qual se aguarda um final feliz.”
Casa das Letras, 2016