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planetamarcia

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Junho 14, 2016

Síndrome de Antuérpia - João Felgar - Opinião

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Foi com bastante expectativa que iniciei a leitura de Síndrome de Antuérpia. Depois da surpresa de descobrir Terra de Milagres, no ano passado, tornou-se inevitável esperar, no mínimo, melhor.

Com este novo livro João Felgar continua a surpreender. A fórmula é idêntica em alguns pontos, na medida em que a leitura é rápida e de certa forma compulsiva. A escrita é, pois, fluída, agarrando o leitor.

A mim comoveu bastante a história deste livro, talvez mais do que a anterior. Apesar de não ser tão misteriosa, pois não me foi difícil deslindar a trama, é uma narrativa bastante densa e não raras vezes dura. O universo feminino continua a ser um foco de interesse, penso que Cassilda Alfarro é uma personagem extraordinária e muito bem construída, mas obviamente que a maior curiosidade e interesse cai sobre Célio, o rapaz que desapareceu da aldeia e passados vinte anos regressa com o corpo da mulher que sempre teve dentro de si.

Voltamos ao ambiente rural, o meio é pequeno e todos se conhecem. Amores, intrigas e lutas familiares. O passado sempre ao virar da esquina, como uma sombra ou um fantasma. Os Alfarro de um lado, família poderosa da terra, e o resto do povo do outro, quase como mero espectador de um dia-a-dia governado por quem pode mexer os cordelinhos. Interessante reflexão sobre a vida em comunidade e sobre quem controla o quê. Sobre o medo das coisas que não se controlam e que, inevitavelmente, o futuro leva à frente, sem piedade.

Quando Célio, agora conhecido como Castiça, a tola da aldeia, aparece morto na pedreira, há muito mais além do que aparenta haver. E o que fazer quando o que não podia ter acontecido é já um acto consumado? Poderá quem manda criar a verdade? Será sempre uma mentira para quem sabe o que realmente o que aconteceu.

Síndrome de Antuérpia não é uma lição sobre a tolerância, e penso que não pretende ser. É muitas outras coisas.

É uma viagem ao coração de uma família doente que já nem luta pelas aparências, por não ser preciso, pois cada um dos seus elementos é de uma transparência que não escapa aos anos de “convívio” entre a população. E mesmo não valendo a pena lutar contra a verdade, e o óbvio ser flagrante, continua a alimentar-se a imagem que Cassilda, agora a matriarca, decide que é a correcta.

É também, por exemplo, uma descrição sem paninhos quentes do caminho que Célio percorreu para ser por fora a mulher que sentia por dentro, numa época em que não havia qualquer acompanhamento médico, e só o moveu a vontade de ser feliz e de se aceitar quando se olhava ao espelho. As loucuras a que sujeitou o corpo, sem medo de experimentar, e as terríveis consequências foram uma tortura para si e também para quem lê as descrições do autor. Mas serão certamente uma ínfima parte das dores de tantos Célios. E é isso que na verdade custa – os pensamentos com que o leitor luta depois da leitura. Mas esta luta, quando permanece depois de fechada a última página, é o melhor prémio que um livro pode oferecer.

Síndrome de Antuérpia permanece. Dificilmente se esquece. Leiam-no!

O lançamento é já amanhã, dia 15 de Junho. Não percam a oportunidade de saber mais sobre este livro.

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 Sinopse

“No princípio tinha corpo e nome de homem. Depois partiu da aldeia, foi-se embora. Quando voltou era uma mulher, com um nome estranho e um passado de estrela dos palcos. Mas talvez fosse mentira. Por algum tempo foi atração de uma boîte de beira de estrada. Até à noite do incêndio, quando lhe deram o nome de Castiça, e se tornou a tola da aldeia. No primeiro sábado da Quaresma, Castiça aparece morta no fundo de uma pedreira abandonada. Traz vestida ainda a roupa que usara durante o corso e o baile de carnaval. Castiça era a doida da aldeia, cantava nas esquinas, bebia muito, e dizia asneiras alto. Mas não foi sempre assim, nem teve sempre esse nome.

Justiniano Alfarro é preso no próprio dia em que o corpo é descoberto, porque tudo indica, com uma clareza sem margem para dúvidas, que foi ele quem a matou. Seria tudo um logro, um embuste, porque Justiniano era o mais perfeito dos homens. Mas nenhuma voz se levantou quando o levaram, e todos aceitaram a notícia num silêncio cúmplice. Todos, menos as mulheres que o amaram. Antuérpia, sua filha, é uma dessas mulheres. Convencida de que enfrenta um conluio, prepara-se para repor a verdade procurando-a no passado do pai. Mas engana-se, porque a origem de tudo está no futuro da aldeia.”

Clube do Autor, 2016

Fevereiro 01, 2015

Terra de Milagres - João Felgar - Opinião

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Amplamente comentado nas sessões da Roda dos Livros, e mesmo tendo sido revelados detalhes cruciais da trama, quis averiguar se “Terra de Milagres” seria merecedor de tão rasgados elogios por parte das minhas amigas Rodistas.

Quando assim é facilmente uma leitura nos desaponta, por, inevitavelmente, elevar demasiado as expectativas. Para minha grande surpresa o livro é, de facto, qualquer coisa de diferente, intenso e envolvente, que obriga a uma leitura constante sem desvios de atenção para outros livros, coisa que faço amiúde.

Uma primeira obra que apresenta um autor com estilo próprio. Uma escrita interessante, corrida e fluida que, não sendo excepcional, cumpre o principal propósito da obra, que é, a meu ver, contar uma história. E foi para saber mais, para descobrir segredos que me foram dados às peças que prossegui a leitura. A acção não é linear, os constantes saltos temporais são indiferentes à tortura do leitor, sedento de saber e, acima de tudo perceber o que aconteceu em determinada(s) altura(s) para justificar o sucedido noutra(s).

Uma estrutura perigosa, que poderia resultar num livro confuso, mas que por ser bem pensada e estar bem construída, cria um ambiente de constante suspense, adensa o interesse e acelera a leitura até ao final. Durante esta corrida a minha imaginação criou os mais diversos cenários, joguei hipóteses como quem joga cartas na mesa e gostei do exercício criativo que esta história, já de si original, me permitiu viver.

“Terra de Milagres” é um livro feminino, sobre a natureza da mulher, sobre as suas diversas facetas e sobre o seu poder. Mulheres determinadas em atingir os seus objectivos, mulheres observadoras, mulheres simples, mulheres complicadas, mulheres sábias, mulheres sensuais, mulheres que dominam os homens mesmo quando lhes são submissas, mulheres malvadas e conspirativas. Várias personagens mulheres, cada uma representando um perfil de feminilidade que compõe, na verdade, características mais ou menos presentes em todas as mulheres. Um livro visionário sobre o universo feminino, por vezes extremista, por vezes doce, sempre verosímil apesar de alguma ficção milagreira. Sobre o poder, as formas subtis e óbvias de o exercer, desde o terror à mentira, o grande poder do medo e do isolamento.

Um livro que faz pensar. Sendo sobre mulheres é curiosamente escrito por um homem, decerto muito bem informado e sem dúvida um observador atento do universo feminino, um ouvinte das suas conversas, um espião de pensamentos, um homem inteligente que descobriu um filão de material ilimitado para escrever um livro excelente. Caro João Felgar, é continuar.

A estragar a coisa, o que é uma pena, há um erro de revisão grave e irritante. A partir de certa altura uma das personagens muda de nome. Constante passa a Clemente a partir da página 178. Temos também a Elvirinha que na página 221 se transforma em Esmeraldinha. E depois há o “coro cabeludo”, que não seria tão grave se não estivesse já arreliada com o Constante /Clemente.

Tudo se pode remediar e rectificar numa próxima edição, que espero que exista, pois é mais do que merecida. Recomendo.

“E observou a condição humana a partir da sua sala de costura, conheceu os princípios e as leis que regiam a convivência entre homens e mulheres, ao ponto de concluir que o futuro de cada um nada tinha de incerto, que o amor mais não era do que uma fina máscara com que se cobrem os instintos, e que as sociedades se moviam à custa do medo: “Quem souber controlar o seu e conseguir manter o dos outros num estado latente, adquire o poder no seu estado mais puro.” (…) “Entre as mulheres era assim: até a gentileza trazia por trás uma ferroada, a amizade é o mais volátil dos sentimentos, sendo capaz de revelar as surpresas mais desagradáveis; pelo sim pelo não, mantêm-se as necessárias distâncias de segurança.” (Pág. 60).

Sinopse

“Júlia é costureira numa aldeia do interior português. Na mesma terra, vivem as suas filhas Leta Mirita e Adelaide. A primeira vive um casamento infeliz, depois de se ter entregado a um homem que lhe prometeu «uma vida bonita». Quanto a Adelaide, só ela sabe o que se passa entre as paredes do quarto que partilha com Antero, seu marido.
Numa noite de temporal o rio invade a aldeia, destrói a ponte que a liga ao resto do mundo, e leva consigo os seis filhos varões de Adelaide. Quando as águas do rio se acalmam, Luzia de Siracusa, filha de Adelaide, vive os seus primeiros arrebatamentos místicos.
A fama de santa e milagreira corre veloz, e dá origem a um culto popular que atrai à aldeia multidões de peregrinos e devotos, indiferentes à hostilidade que o fenómeno inspira às autoridades eclesiásticas. 
Ódios e cumplicidades entrelaçam-se com os comportamentos e hábitos do nosso tempo e da nossa terra. Uma terra onde por trás de um segredo se esconde sempre outro, e onde nem os milagres são o que parecem.”

Clube do Autor, 2014