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planetamarcia

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Janeiro 19, 2014

as primeiras coisas - Bruno Vieira Amaral - Opinião

 

É na Introdução que Bruno Vieira Amaral agarra de imediato o leitor. A forma como o narrador descreve a sua solidão, como se sente uma ilha tanto em relação ao passado (casamento, emprego), como em relação ao presente – à sua situação actual de regresso à casa da mãe e ao bairro onde cresceu. Tudo à sua volta lhe parece absurdo e é extraordinária a forma como o autor consegue transmitir todos esses sentimentos ao leitor. Uma escrita sincera e crua, que dá a sensação de sair bem logo à primeira, sem paninhos quentes nem artifícios. A escrita convenceu-me e é, para mim, a grande surpresa deste livro.

“Há momentos em que somos obrigados a conviver com pessoas de natureza tão distinta da nossa que bastam cinco minutos de contacto para percebermos que, cedo ou tarde, os diques que sustêm a hostilidade latente acabarão por ceder e quanto mais pressão pusermos sobre eles maior será a catástrofe. A questão que nos colocamos é a de saber se o ideal é passar de imediato para a fase de conflito declarado ou aguardar diplomaticamente que, como dizem alguns entendidos nas matérias, as coisas sigam ao seu ritmo, na vã esperança de que uma relação franca e honesta, ainda que difícil, seja possível. A diplomacia, sabe quem já esteve na guerra, é um exercício de grande violência interior.” (Págs. 20/21)

“Doía-me cada músculo, como se estivessem a ser pressionados por uma mão invisível, todos os ossos, como se estivessem a ser roídos por dentro. (…) Chegara ao ponto mais baixo da minha existência, desprovido de qualquer esperança, sem vontade de sair do quarto, só animado pelo desejo mórbido de apodrecer ali dentro, esquecido. (…) Chegara ao fim. Não era agonia. Era cansaço, desemprego existencial, lassidão dos membros, a ânsia de adormecer.” (Págs. 55/56).

E quando o viajante está na última paragem surge um último transporte. Que na verdade não o leva para longe mas para dentro, numa viagem real ao coração do Bairro Amélia, uma subida a um palco com direito a uma viagem pelos bastidores de uma peça de teatro tão triste quanto cómica, tão inacreditável que só pode mesmo ser real. Uma viagem redentora? Um passeio em busca de salvação?

E vamos todos. Todos os que lerem este livro. Eu não só visitei o Bairro Amélia como fui concluindo que o Bairro Amélia me visita diariamente, mesmo sem nunca lá ter estado. Personagens que parecem saídas de uma imaginação rocambolesca existem, e todos os dias saem dos seus Bairros Amélia e surgem na minha vida; identifico com facilidade alguns deles que, tal como eu, têm empregos e andam por todo o lado. Este Bairro é, em grande medida, o retrato de um país retrógrado, povoado de analfabetos, com tendências doentias. Ou então sou eu que tenho azar de conviver com eles diariamente.

As descrições de Bruno Vieira Amaral são transversais a toda uma sociedade. A pobreza de espírito e a ignorância não são exclusivas dos bairros sociais ou das camadas mais pobres. Na verdade vivemos num país que é um grande Bairro Amélia.

Quanto a pontos menos positivos deste livro tenho de apontar as notas de rodapé, que não têm a sua função habitual; sendo demasiado exaustivas e excessivas (mais de noventa), são quase sempre outras estórias. Tenho de admitir que as descrições isoladas das personagens ou situações, como se fossem capítulos, nem sempre me facilitaram o cruzamento da informação; sabia que já se tinha falado de determinada pessoa algures mas já não era suficiente para reter laços familiares ou amizades/inimizades, talvez aqui notas de rodapé na sua função mais básica tivessem sido úteis.

À parte estes detalhes importa reter que “as primeiras coisas” é, acima de tudo, um livro real que vale pela forma como nos acorda, revolta, diverte e emociona, faz pensar que ninguém está livre de perder tudo, mas só depende de quem cai conseguir levantar-se. Nem que seja para fazer uma viagem de observação e dissertar.

Sinopse

“Quem matou Joãozinho Treme-Treme no terreno perto do depósito da água? O que aconteceu à virginal Vera, desaparecida de casa dos pais a dois meses de completar os dezasseis anos? Quem foi o homem que, a exemplo do velho Abel, encontrou a paz sob o céu pacífico de Port of Spain? Porque é que os habitantes do Bairro Amélia nunca esquecerão o Carnaval de 1989? Quem é que poderá saber o nome das três crianças mortas por asfixia no interior de uma arca? Onde teria chegado Beto com o seu maravilhoso pé esquerdo se não fosse aquela noite aziaga de setembro? Quantos anos irá durar o enguiço de Laura? De que mundo vêm as sombras de Ernesto, fabuloso empregado de mesa, Fernando T., assassinado a 26 de dezembro de 1999, Jaime Lopes, fumador de SG Ventil, Hortênsia, que viveu e morreu com medo de tudo? Quando é que Roberto, anjo exterminador, chegará ao bairro para consumar a sua vingança? 
Memórias, embustes, traições, homicídios, sermões de pastores evangélicos, crónicas de futebol, gastronomia, um inventário de sons, uma viagem de autocarro, as manhãs de Domingo, meteorologia, o Apocalipse, a Grande Pintura de 1990, o inferno, os pretos, os ciganos, os brancos das barracas, os retornados: a Humanidade inteira arde no Bairro Amélia.”

Quetzal, 2013