Novembro 09, 2014
Se nos Encontrarmos de Novo - Ana Teresa Pereira - Opinião
Por vezes acontece. Ler um livro perfeito.
Acontece-me cada vez menos encontrar livros maravilhosos, que apenas exigem dois gestos: abrir na primeira página e fechar na última.
Ana Teresa Pereira publica quase um livro por ano desde 1989 e eu nunca tinha ouvido falar nela. Captei o nome numa conversa, pesquisei, informei-me com quem já leu. Senti que descobri um segredo, e não está certo guardar algo tão bom como um segredo. Escrevo este texto para partilhar que há uma escritora brilhante. Portuguesa ainda por cima. Será um texto diminuto (ridículo mesmo), que nunca fará justiça à sua obra, mas pode ser que sirva para dar a conhecer àqueles que, como eu, devem viver debaixo das pedras, onde a informação de livros tão bons não chega facilmente.
Difícil é explicar porque gostei tanto. Não devia ser. É um conjunto tão grande de coisas com que me identifico, modos de vida que entendo, experiências que gostaria de ter, que me perco a tentar organizar ideias. E depois as constantes referências à arte. Desde o teatro à pintura, passando pelo cinema, e muito incisivamente nos livros, é um constante tomar notas e pesquisar referências, um livro que dá vontade de ler tantos outros, e de conhecer tantos lugares, e de viver como Ashley e Byrne. Viver para o que amam.
A escrita é organizada e bela, grande parte do livro a duas vozes, duas vozes da mesma história. Tudo faz sentido. Se não for logo será mais tarde. Não há pontas soltas nem mistérios. É uma escrita que inspira a liberdade, lê-se sem amarras e vive-se o que se lê de forma intensa, mas ao mesmo tempo com calma, em paz, por ser tão bonito.
Tudo o que eu escreva será pouco. Prefiro partilhar excertos que significam muito. Desafio-vos a descobrir.
“Byrne sentiu o ar muito frio na cara, olhou para cima, os flocos de neve caíam devagar, lembrou-se de um fresco que vira num velho mosteiro da Rússia, anos antes, era como se os anjos desdobrassem o céu em frente do rosto impassível de Deus.” (Pág. 16);
“Durante muitos anos fora só uma casa mais ou menos assombrada, onde viviam uma mulher e um fantasma . Gene Tierney e Rex Harrison na varanda, numa noite de neblina, os barcos perdidos na neblina, os barcos que se despedaçavam contra as rochas. Byrne dissera que talvez houvesse uma passagem debaixo do mar entre a casa e a ilha, e ela sorrira, estava de regresso aos livros de Enid Blyton, se tivesse oito anos, ou mesmo quinze, desceria pela corda do poço para procurar uma abertura. E talvez a encontrasse. Imaginou o túnel debaixo do mar, o som obscuro da água sobre a sua cabeça. Deus, a sua vida estava cheia de histórias.” (Pág. 115);
“Entravam nas pequenas livrarias de Cecil Court, passavam lá muito tempo, e encontravam verdadeiros tesouros, um álbum de Andrea del Sarto, os Notebooks de Henry James, uma primeira edição de The Mirror of the Sea de Conrad. Voltavam para casa contentes como crianças, e sentavam-se à mesa da cozinha a folhear os seus achados” (Pág. 117);
“Depois de tantas viagens e tantos livros. E nunca me aconteceu nada mais importante do que tu. (…) Cada dia é um dia a mais do que merecemos.” (Pág. 130);
Relógio D’Água, 2004