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Foi com bastante expectativa que iniciei a leitura de Síndrome de Antuérpia. Depois da surpresa de descobrir Terra de Milagres, no ano passado, tornou-se inevitável esperar, no mínimo, melhor.
Com este novo livro João Felgar continua a surpreender. A fórmula é idêntica em alguns pontos, na medida em que a leitura é rápida e de certa forma compulsiva. A escrita é, pois, fluída, agarrando o leitor.
A mim comoveu bastante a história deste livro, talvez mais do que a anterior. Apesar de não ser tão misteriosa, pois não me foi difícil deslindar a trama, é uma narrativa bastante densa e não raras vezes dura. O universo feminino continua a ser um foco de interesse, penso que Cassilda Alfarro é uma personagem extraordinária e muito bem construída, mas obviamente que a maior curiosidade e interesse cai sobre Célio, o rapaz que desapareceu da aldeia e passados vinte anos regressa com o corpo da mulher que sempre teve dentro de si.
Voltamos ao ambiente rural, o meio é pequeno e todos se conhecem. Amores, intrigas e lutas familiares. O passado sempre ao virar da esquina, como uma sombra ou um fantasma. Os Alfarro de um lado, família poderosa da terra, e o resto do povo do outro, quase como mero espectador de um dia-a-dia governado por quem pode mexer os cordelinhos. Interessante reflexão sobre a vida em comunidade e sobre quem controla o quê. Sobre o medo das coisas que não se controlam e que, inevitavelmente, o futuro leva à frente, sem piedade.
Quando Célio, agora conhecido como Castiça, a tola da aldeia, aparece morto na pedreira, há muito mais além do que aparenta haver. E o que fazer quando o que não podia ter acontecido é já um acto consumado? Poderá quem manda criar a verdade? Será sempre uma mentira para quem sabe o que realmente o que aconteceu.
Síndrome de Antuérpia não é uma lição sobre a tolerância, e penso que não pretende ser. É muitas outras coisas.
É uma viagem ao coração de uma família doente que já nem luta pelas aparências, por não ser preciso, pois cada um dos seus elementos é de uma transparência que não escapa aos anos de “convívio” entre a população. E mesmo não valendo a pena lutar contra a verdade, e o óbvio ser flagrante, continua a alimentar-se a imagem que Cassilda, agora a matriarca, decide que é a correcta.
É também, por exemplo, uma descrição sem paninhos quentes do caminho que Célio percorreu para ser por fora a mulher que sentia por dentro, numa época em que não havia qualquer acompanhamento médico, e só o moveu a vontade de ser feliz e de se aceitar quando se olhava ao espelho. As loucuras a que sujeitou o corpo, sem medo de experimentar, e as terríveis consequências foram uma tortura para si e também para quem lê as descrições do autor. Mas serão certamente uma ínfima parte das dores de tantos Célios. E é isso que na verdade custa – os pensamentos com que o leitor luta depois da leitura. Mas esta luta, quando permanece depois de fechada a última página, é o melhor prémio que um livro pode oferecer.
Síndrome de Antuérpia permanece. Dificilmente se esquece. Leiam-no!
O lançamento é já amanhã, dia 15 de Junho. Não percam a oportunidade de saber mais sobre este livro.
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Sinopse
“No princípio tinha corpo e nome de homem. Depois partiu da aldeia, foi-se embora. Quando voltou era uma mulher, com um nome estranho e um passado de estrela dos palcos. Mas talvez fosse mentira. Por algum tempo foi atração de uma boîte de beira de estrada. Até à noite do incêndio, quando lhe deram o nome de Castiça, e se tornou a tola da aldeia. No primeiro sábado da Quaresma, Castiça aparece morta no fundo de uma pedreira abandonada. Traz vestida ainda a roupa que usara durante o corso e o baile de carnaval. Castiça era a doida da aldeia, cantava nas esquinas, bebia muito, e dizia asneiras alto. Mas não foi sempre assim, nem teve sempre esse nome.
Justiniano Alfarro é preso no próprio dia em que o corpo é descoberto, porque tudo indica, com uma clareza sem margem para dúvidas, que foi ele quem a matou. Seria tudo um logro, um embuste, porque Justiniano era o mais perfeito dos homens. Mas nenhuma voz se levantou quando o levaram, e todos aceitaram a notícia num silêncio cúmplice. Todos, menos as mulheres que o amaram. Antuérpia, sua filha, é uma dessas mulheres. Convencida de que enfrenta um conluio, prepara-se para repor a verdade procurando-a no passado do pai. Mas engana-se, porque a origem de tudo está no futuro da aldeia.”
Clube do Autor, 2016