Maio 28, 2016
Cidade em Chamas - Garth Risk Hallberg - Opinião
Leitura concluída. Cerca de 1000 páginas de personagens que viveram comigo quase dois meses. Não me lembro de passar tanto tempo com um livro. Na verdade, fui lendo outros ao mesmo tempo, mas regressei sempre e nunca pensei em não chegar ao fim. Assim que lhe peguei soube que não o leria seguido, alguma coisa me disse que precisaria de tempo, a dimensão impõe respeito, o peso dificulta o transporte, e a necessidade de pausas que a história me provocou fez com que este seja, possivelmente, um record do livro que demorei mais tempo a ler.
Acompanhei as notícias sobre o Cidade em Chamas e todo o alarido em torno do livro antes de ser publicado. Confesso que encarei tudo como uma grande manobra de publicidade (e continuo a achar o mesmo), mas não pude deixar de ficar perplexa por terem sido pagos dois milhões de dólares adiantados a Garth Risk Hallberg para escrever um romance sobre a cidade de Nova Iorque na década de 70. De referir que este é o seu primeiro romance. Achei tudo tão incrível que tinha de o ler. E a manobra de publicidade funcionou em cheio.
Não é um livro fácil. Não é um livro simples. É um livro que, quanto a mim, vive de uma história que se alimenta (e alimenta o leitor) dos saltos temporais. É como um puzzle dado a conta-gotas, um brilhante exercício de teste à resistência de quem lê. O leitor é um bocadinho maltratado pelo Sr. Hallberg, que cria vários cenários simultâneos construídos muito lentamente. Ou seja, (e não vou entrar em detalhes de enredo nem de personagens, porque para isso deixo-vos um cheirinho com a sinopse) entramos na acção no último dia de 1976, e logo percebemos que há muito que se passou antes, que explica o momento presente. Mas havemos de lá ir, ao passado. Com a curiosidade dos pacientes (os que não são é melhor que adquiram essa capacidade, se eu consegui todos conseguem) lemos centenas de páginas, avançando para o futuro, sentindo o tanto que nos escapa nas entrelinhas. Por vezes o Sr. Hallberg é simpático e deixa umas pistas igualmente simpáticas, que o leitor agradece, mas que ainda não chegam, não são suficientes para juntar as peças. E continua. A escrita irrepreensível e cuidada é fundamental, funciona como um íman e é o único motivo para arredar os sentimentos de desistência da cabeça do leitor. A tradução igualmente irrepreensível da Tânia Ganho terá, certamente, a sua quota parte nesta arte de manter o leitor alinhado.
Ou seja, parei a leitura diversas vezes, li outros livros entretanto, mas vivi sempre com o bichinho Cidade em Chamas. O meu exemplar viu passar diversos companheiros pela mesinha de cabeceira, mas permaneceu, foi companheiro, fez-me ter saudades e vontade de regressar. As personagens e a trama continuavam vivas apesar das paragens, como se nos tivéssemos separado no dia anterior.
Não conheço Nova Iorque. Nasci em 1977. Não associei nenhum dos lugares a algo que tenha visto, e cronologicamente seria mesmo impossível. Para mim foi descobrir um novo mundo, viajar no tempo com um realismo avassalador e enquadrar historicamente uma cidade literalmente em chamas. Não tenho competência para avaliar a capacidade de enquadramento do autor, e dá para desconfiar pois o próprio autor nasceu em 1979, mas eu acreditei em tudo, desde a forma como a cidade “desapareceu” em chamas e porquê, passando pelo movimento punk, todo ele uma espécie de incêndio, e a arte, sempre a vontade de criar, construir beleza no meio do caos, neste caso, das cinzas.
Os dramas no núcleo das famílias (e são várias as famílias deste livro) e a forma como esses dramas se entrelaçam habilmente criando tentáculos que aproximam as personagens, fazendo-as interagir pelos mais diversos motivos, é surpreendente. Logo no início, na noite de fim de ano, o homicídio de Samantha envolve várias personagens, sendo um dos pontos de união e (grande) interesse do enredo. Outros acontecimentos surpreendentes vão surgindo, enredando o novelo de gente que, mais uma vez a conta-gotas, revela os seus motivos e (verdadeiro) papel na trama.
Polémico ao ponto de suscitar curiosidade, famoso antes sequer de ser editado, Cidade em Chamas parece fazer um percurso inverso, tendo recebido aplausos antes de existir. As opiniões dos leitores são distintas e mesmo antagónicas, basta “dar uma voltinha no Goodreads” para perceber que o consenso é pouco e a polémica é muita.
Podia chegar ao fim da leitura e concluir que não passa de mais um exemplo do “falem bem, falem mal, mas falem” e decidi correr esse risco mantendo as expectativas moderadas. Mas isso não aconteceu. Envolvi-me. Escutei os sons, li a fanzine, assisti a concertos, senti o frio das noites na cidade gelada, e o calor sufocante da escuridão. Havia sempre drogas e o amor queria ser livre, uma liberdade que ainda hoje tem muito que caminhar, infelizmente.
De alguma forma miraculosa estive lá. Não percebo de literatura, sou apenas leitora, mas se não é isto o que chamam de Grande Romance Americano, não sei o que será.
Sinopse
“No último dia de dezembro de 1976, Nova Iorque prepara-se para celebrar a passagem de ano. Em Times Square, a famosa bola cai; na baixa, os antros punk explodem de energia; as penthouses da zona alta da cidade iluminam-se em elegantes festas temáticas. Sobre a neve que cobre o Central Park derrama-se o sangue de Samantha Cicciaro. Muitos metros acima, na varanda de um luxuoso apartamento, dá-se um encontro improvável entre Regan Hamilton-Sweenie, herdeira de uma enorme fortuna, e Mercer Goodman, um professor negro recém-chegado do interior do país. A uni-los está William, um artista plástico a braços com a sua arte e os seus demónios. Rotas individuais em colisão, que nos conduzem aos recantos mais solitários de uma cidade perigosa, selvagem, à beira do colapso.
Em seu redor, gravitam pessoas tão diferentes quanto os mundos que habitam: um adolescente suburbano seduzido por Manhattan, um financeiro acossado, um jornalista obcecado com uma única história, um grupo terrorista, e o detetive que tenta descobrir quais são as ligações de cada um deles ao tiroteio no Central Park.
E quando a cidade se cobre de negro no célebre apagão de 13 de julho de 1977, estas vidas mergulham numa escuridão da qual sairão transformadas para sempre.”
Teorema, 2015
Tradução de Tânia Ganho
Tradução dos interlúdios de Rita Almeida Simões