Primeiro é o toque. Suave, diferente e agradável. A capa ajusta-se e delicia as mãos. Surge a vontade de pegar no livro só para sentir o fantástico acabamento. Arranha-Céus é o primeiro livro que leio da chancela Elsinore, e falando apenas do aspecto físico do objecto-livro, tenho de me assumir como uma fútil apreciadora do trabalho desenvolvido pela editora. Sim, eu sei que o que interessa é o conteúdo, mas poder aliar o prazer da leitura ao prazer de segurar um livro tão bem acabado que não apetece largar, permite um grande avanço nas páginas lidas. E não é disso que gostamos? De ler livros ávida e rapidamente para, obviamente, poder ler mais livros a seguir?
Tenho de destacar também as páginas de abertura e fecho, elegantes, a negro. No início lê-se “You are Welcome to Elsinore, de Mário Cesariny. No final as notas de apresentação das tradutoras e do ilustrador. Gostei muito deste destaque final pois apesar do trabalho do tradutor ser fundamental é, na maioria das vezes, esquecido, quase fantasmagórico. Numa época em que a grande maioria das capas dos livros são “pescadas” em bancos de imagem, é um luxo que esta edição de “Arranha-Céus” tenha uma capa original.
Mas se dizem que o Diabo mora nos detalhes, e eu concordo, aqui o Diabo fez o favor de fazer acompanhar os detalhes de elegância e bom gosto que descrevi, com um conteúdo absolutamente diabólico. Desculpem o excesso de referências infernais, mas adequam-se perfeitamente, em ambas as circunstâncias, tanto nos diabólicos pormenores requintados, como na descida ao inferno que é ler este livro.
Horrível e incrível. Duas palavras recorrentes durante a leitura. Não pude evitar a sensação constante de me estar a escapar algo, de não estar a perceber os motivos dos acontecimentos dentro desta construção excessiva e cheia de excessos. Comecei por verificar que os habitantes do Arranha-Céus, e são muitos num prédio de quarenta pisos e mil apartamentos, não diferiam muito da vizinhança de qualquer prédio, com manias e hábitos capazes de mexer com a paz dos outros. Há essa semelhança, independentemente de, no caso deste livro, a vizinhança ser composta, unicamente, de pessoas ricas em que, pelo menos, um elemento de cada agregado tem uma actividade profissional considerada de topo. E aqui surge a primeira conclusão óbvia, ricos ou pobres, os vizinhos têm a capacidade de nos dar cabo dos nervos, e mesmo num prédio de luxo como este, o teor das discussões não difere muito do que podemos ter lá no nosso prédio.
Mas a certa altura, bastante cedo na narrativa por sinal, percebi que o desfecho das relações desta vizinhança iria muito além do ocasional bate-boca por causa do estacionamento ou do cocó do cão. Estas personagens são possuídas por uma necessidade de luta e destruição que, eu confesso mais uma vez, tive dificuldade em perceber de onde vinha. É referida muitas vezes a força e influência exercida pelo prédio, como se a própria construção tivesse um poder de mobilizar os seus elementos numa luta sem regras nem limites pelo poder de atingir o topo. O topo tem um sentido físico, é efectivamente o topo do edifício, mas eu não pude deixar de lhe atribuir um significado de força e poder. Mesmo dentro desta população abastada, distinguem-se os mais ricos pela localização superior. Mais poder significa um apartamento mais alto e, consequentemente, menor abastança significa viver mais abaixo.
A população isola-se. Descarta as necessidades básicas, como comer, dormir, tomar banho, abandona a privacidade e luta, trava uma guerra que só existe na estrutura do arranha-céus, é criada e cultivada internamente, e assume contornos de uma guerra mundial, pois para estes guerreiros o mundo existe até aos limites das paredes e dos tectos. E é uma guerra pela liberdade, não como a poderemos imaginar à partida, mas uma liberdade de tudo o que tiveram. É um soltar de amarras do convencional caindo na decadência furiosa de não ter limites. Uma guerra pelo que consideram a normalidade. Primeiro estranha-se e depois não se entranha, não encaixa nem se aceita. Lê-se com constante estranheza e incompreensão mas avança-se nesse caminho escuro de horror e nojo. E gosta-se. Eu gostei. E muito. As descrições são reais e avassaladoras, a narrativa tem ritmo, e nem mesmo nos momentos em que apetece voltar a cara ao lado, cedi ao entusiasmo de ler.
Deixo um excerto. Recomendo, claro.
Sinopse
“«Mais tarde, sentado na varanda a comer o cão, o Dr. Robert Laing refletiu sobre os estranhos acontecimentos que nos últimos três meses tinham ocorrido no interior do prédio enorme.»
Num imponente edifício de quarenta andares, o último grito da arquitetura contemporânea, vive Robert Laing, um bem-sucedido professor de medicina, mais duas mil pessoas. Para desfrutarem desta vida luxuosa, não precisam sequer de sair à rua: ginásio, piscina, supermercado, tudo se encontra à distância de um elevador. Mas alguma coisa estranha borbulha por baixo desta superfície de rotina.
Primeiro atacam-se os automóveis na garagem, depois os moradores. Um incidente conduz a outro e, acossados, os vizinhos agrupam-se por pisos. Quando aparecem as primeiras vítimas, a festa mal começou. É então que o realizador de documentários Richard Wilder resolve avançar, de câmara em punho, numa viagem por esta inexplicável orgia de destruição, testemunhando o colapso do que nos torna humanos.
Entre a alucinação e a anarquia, a visão nunca ultrapassada de J. G. Ballard oferece-nos um retrato demencial de como a vida moderna nos pode empurrar, não para um estádio mais avançado na evolução, mas para as mais primitivas formas de sociedade.”
Elsinore, 2015
Tradução de Marta Mendonça e Rute Mota
Ilustração da capa de Lorde Mantraste