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planetamarcia

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Agosto 31, 2015

A Morte do Pai - Karl Ove Knausgård - Opinião

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Numa época em que a curiosidade sobre a vida alheia assume contornos doentios, confesso que receava que “A Morte do Pai” fosse um livro em formato reality show. E se o alarido em redor do livro me fixou nesse palpite, posso apenas resignar-me e aceitar que sou mais uma criatura com interesse em espreitar a vida dos outros.

Se tudo o que Karl Ove escreve é autobiográfico e verdadeiro, tiro-lhe o chapéu à coragem de contar pormenores tão pessoais de forma por vezes tão fria e distante, não exactamente pelos factos, mas pela forma como ele olha e vive os factos. A família, as mulheres e os filhos têm o lugar que ele lhes atribui na sua escala de prioridades. Não discuto nem me interessa se é a certa ou a errada, mas admiro a honestidade, a sinceridade de dizer que gosta e precisa de solidão, e que esta é essencial ao seu objectivo. Escrever. Amará menos os outros por lutar pelo seu espaço? Se calhar sim. E não é bonito. Mas se é verdade adianta negar aos outros? E a si próprio?

Com a leitura desliguei-me da dúvida verdade/mentira/realidade/ficção. Não porque esteja convencida de algum dos pontos, mas simplesmente porque deixou de me interessar. “A Minha Luta” é a história de um homem. Uma boa história, bem contada e bem escrita. Por isso pouco me importa se é a história do homem da capa ou de outro qualquer.

Um livro que é uma construção, que se constrói a si próprio, e que me foi convencendo à medida que avançava na leitura. Como se fosse ganhando sustentação. No fundo, como se fosse crescendo, como se o autor fosse apurando as descrições, os pensamentos, a forma de observar o mundo com o passar dos anos, de criança a jovem adulto. A maturidade da escrita é crescente e acompanha os anos de vida de Karl Ove. Propositado ou não o resultado é, na minha opinião, satisfatório.

O salto qualitativo da narrativa é francamente notório a partir da segunda parte. Um Karl Ove adulto é descrito de forma mais desafiante e menos óbvia. O leitor torna-se íntimo das suas reflexões e viagens às recordações. Independentemente das diferenças culturais que possam justificar uma maior frieza, e esta possibilidade é, obviamente discutível, a forma como olha para si próprio, o distanciamento que consegue criar em relação a tudo é tão marcante e intenso, que as reacções emocionais à morte do pai fazem dele um ser humano complexo e incoerente e, definitivamente, desorientado. Nada de novo. O senhor é humano.

Gostei e quero ler o próximo. E, se não desiludir, prossigo.

“Andei de um lado para o outro durante alguns minutos, tentando atribuir algum significado ao facto de o meu pai estar morto, mas não consegui. Não tinha significado. Eu percebia-o, aceitava-o, e o absurdo não era que uma vida que poderia não ter sido ceifada fora ceifada, mas que se tratasse de um facto entre muitos outros e não ocupasse na minha consciência a posição que deveria ocupar.” (Pág. 200);

“Mas o meu pai tivera aquilo que merecera, era bom que tivesse morrido, tudo aquilo que em mim sugerisse o contrário era mentira. E isso aplicava-se não só ao homem que ele fora quando era pequeno, mas também ao homem que se tornara na meia-idade, quando rompeu com o passado e começou de novo.” (Pág. 207);

“A primeira vez que me apercebi de que o que estava a escrever tinha realmente algum significado, e que não era apenas eu querer ser alguém ou a fingir ser alguém, foi quando escrevi uma passagem sobre o meu pai e comecei a chorar enquanto escrevia. Nunca me aconteceu tal coisa, nem nada de semelhante. Escrevi sobre o meu pai e as lágrimas correram-me pelas faces. Mal conseguia ver o ecrã ou o teclado, limitava-me simplesmente a martelar as teclas. Desconhecia por completo a existência daquela dor que jazia dentro de mim e que nesse instante se libertara; não tinha a mais pequena intuição de que ela existia. O meu pai era um idiota, eu não queria ter nada que ver com ele, e não me custava nada manter-me afastado. Nem se tratava de me manter afastado dele, mas sim de que ele não existia; nada nele me comovia. Era assim que tinha sido, mas depois sentara-me a escrever e as lágrimas jorraram.” (Pág. 371);

Sinopse

“Karl Ove Knausgård escreve sobre a vida com dolorosa honestidade. Escreve sobre a infância e os anos de adolescência, a paixão pelo rock, a relação com a sua afectuosa e algo distante mãe, e o seu pai, sempre imprevisível, cuja morte o desorientou. O álcool e a perda pairam como sombras sobre duas gerações da família.
Quando ele próprio se torna pai, Knausgård tem de encontrar um equilíbrio entre o amor pela família e a determinação em escrever.
Knausgård criou uma história universal de lutas, grandes e pequenas, que todos enfrentamos na vida. Um trabalho profundo e hipnotizante, escrito como se a própria vida do autor estivesse em risco.
A Morte do Pai é o primeiro de seis romances que compõem a obra autobiográfica A Minha Luta.”

Relógio D’água, 2014

Tradução de João Reis

Agosto 26, 2015

Marcador - Um Momento Meu, de Paulo Caiado

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O RETRATO DE UMA GERAÇÃO, QUE IRÁ TRAZER RECORDAÇÕES E PROVOCAR SORRISOS E LÁGRIMAS A TODOS AQUELES QUE VIVERAM A SUA JUVENTUDE NOS ANOS 80 EM PORTUGAL.

Amigos desde sempre, Lucas, Marcos, Mateus e João chegaram à casa dos 40, com tudo o que isto tem de bom e de menos bom: a maturidade e a experiência, mas também a insegurança em relação às decisões a tomar para o futuro e a angústia quando à aproximação dos 50.

Um Momento Meu relata com genuidade o passado e o presente de homens e mulheres nascidos nos anos 1960 que, a caminho do meio século de existência ainda buscam para o seu futuro a felicidade plena, ou, pelo menos, um equilíbrio entre a rotina e os momentos felizes.

«A felicidade é uma colcha feita de dezenas de retalhos. Cada retalho é um momento, um instante em que a nossa alma se ilumina e que tornamos eterno enquanto dura. E na realidade, são momentos eternos, pois irão perdurar na nossa memória e reconfortar-nos, aconchegar-nos nos outros momentos, naqueles pontos em que não há retalhos de felicidade para coser a colcha.»

PAULO CAIADO é gestor de empresas. Aos 50 anos decidiu tirar um período sabático e fazer as coisas que sempre quis fazer. Viajou, visitou amigos, fez voluntariado, etc, e finalmente teve tempo para escrever o seu primeiro romance. Escreve sobre a vida na sua página do Facebook «Um Momento Meu». Adora conversar à mesa. Tem quatro filhos e um milhão de amigos. Estar com eles é a sua grande paixão.

Agosto 23, 2015

A Louca da Casa - Rosa Montero - Opinião

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A necessidade de escrever. A experiência de escrever. Viver intensamente o que se escreve como se escrever um romance fosse habitar uma vida paralela que se afunila na vida real consumindo tudo.

Ler “A Louca da Casa” é entrar na espiral de loucura de escrever um romance, ou pelo menos, ter uma visão bastante real da necessidade de entrega à escrita. Mas, acima de tudo, da necessidade da necessidade de entrega, da constante sede de imaginar e criar. De, mesmo quando se está a ler, deixar a imaginação, a louca da casa, à solta, e reescrever linhas que se soltam sozinhas dos livros.

Disseram-me que não há nada que se compare ao tempo em que se está a escrever um romance. Nada como os anos que se dedicam a um projecto que permite uma fuga tão intensa. Nada como as saudades de voltar a esse lugar e começar tudo de novo. É isso que alimenta a fonte que seca no fim da viagem. A vontade de voltar. A necessidade de quem não pode viver sem querer cair mais uma vez nesse abismo.

“Tenho saudades de estar a escrever. De viver a pensar que saio do trabalho e vou escrever. De dedicar todos os minutos do meu dia, acordado ou a dormir, a imaginar o que vai acontecer.” Isto também me disseram.

Neste livro Rosa Montero convenceu-me definitivamente que é tudo verdade.

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O que mais gosto em ler livros emprestados é passar pelas linhas que foram do leitor anterior. Tentar perceber onde demorou mais tempo, comparar passagens favoritas através das marcas ou sublinhados. É descobrir, não só o livro, mas também os sentimentos que o livro provocou. O que menos gosto é a separação. É deixar ir um livro que já guardo num lugar especial. Que enchi de marcas daquilo que me encheu cá dentro.

Uma leitura Roda dos Livros – Livros em Movimento

Sinopse

“Um romance? Um ensaio? Uma autobiografia? A Louca da Casa é, em qualquer dos casos, a obra mais pessoal de Rosa Montero: uma viagem através do misterioso universo da fantasia, da criação artística e das recordações mais secretas da própria autora.
Rosa Montero empreende uma viagem ao mais profundo do seu ser através de um jogo narrativo pleno de surpresas, onde literatura e vida se misturam num cocktail afrodisíaco de biografias alheias e de autobiografia romanceada. E assim descobrimos, por exemplo, que Goethe adulava os poderosos, que Tolstoi era um energúmeno, que Rosa, ela própria, em criança, se julgava anã, e que, com vinte e três anos, manteve um extravagante e arrebatador romance com um actor famoso. Todavia, não devemos fiar-nos por completo em tudo o que a autora conta sobre si mesma: as recordações não são sempre o que parecem. Um livro sobre a fantasia e os sonhos, a loucura e a paixão, os medos e as dúvidas dos escritores – mas, também, de cada um de nós –, A Louca da Casa é, sobretudo, a tórrida história de amor que existe entre Rosa Montero e a sua própria imaginação.”

Asa, 2004

Agosto 20, 2015

Teorema - Esse Cabelo - Djaimilia Pereira de Almeida

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O que se passa por dentro das cabeças é mais importante do que o que se passa por fora?

Falar de cabelos é sempre uma futilidade?

Não necessariamente, até porque, segundo a narradora deste texto belo e contundente, «escrever parece-se com pentear uma cabeleira em descanso num busto de esferovite» e visitar salões é uma boa forma de conhecer países, de aprender a distinguir modos e feições e até de detectar preconceitos.

Esta é a história de uma menina que aterrou despenteada aos três anos em Lisboa, vinda de Luanda, e das suas memórias privadas ao longo do tempo, porque não somos sempre iguais aos nossos retratos de infância; mas é também a história das origens do seu cabelo crespo, cruzamento das vidas de um comerciante português no Congo, de um pescador albino de M’banza Kongo, de católicas anciãs de Seia, de cristãos-novos maçons de Castelo Branco

E, assim, ao acompanharmos as aventuras deste cabelo crespo, é também à história indirecta da relação entre vários continentes – a uma geopolítica – que inequivocamente assistimos.

Nas livrarias a 31 de Agosto

Agosto 17, 2015

os meus sentimentos - Dulce Maria Cardoso - Opinião

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Iniciei este livro várias vezes sem nunca passar da primeira página. A dor das primeiras frases bloqueou-me, retraiu-me, assustou-me pelo que poderia vir a seguir. Mas, ao mesmo tempo, senti a necessidade de prosseguir a leitura, como se o livro me chamasse.

Porque mesmo as descrições mais dolorosas sobre temas particularmente assustadores, têm de ser lidas. Assim o obriga a excelência da escrita, imediatamente notória no início, e que, confirmo, é perfeita até à última página.

“inesperadamente

não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada,

inesperadamente páro

a posição em que me encontro, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, não me incomoda, o meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve ter sido violento, não me lembro, abri os olhos e estava assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no tejadilho, as pernas soltas, o desacerto de um boneco de trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota de água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo identificar os barulhos que ouço, recomeço, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa,

são tão maçadoras as lengalengas”

Inevitavelmente, chegou o dia que comecei a ler este livro. Passei à segunda página a que se seguiram todas as outras. Foi das experiências de leitura mais magníficas que tive. Dolorosa. Como se me rasgasse por dentro de tão intenso. Pela história, pelas circunstâncias, pela construção de uma narrativa que parece confusa mas que se entende. Entendemos e lemos os pensamentos da personagem, Violeta.

E Violeta pensa como todos nós. Lembra-se do passado mais antigo, salta para o mais recente por causa de alguma memória que se atravessa, cruza acontecimentos, pessoas, recordações, e o leitor percebe. Entende e vive a dor de Violeta, percebe a amálgama de coisas que lhe surgem à velocidade do pensamento, identifica-se, porque todos pensamos assim, a um ritmo que só o próprio, por conhecer a sua história, acompanha.

No momento em que pensamos que vamos morrer revemos tudo o que fomos e fizemos, dizem. É o que acontece a Violeta, de cabeça para baixo no carro acidentado. Este livro é a viagem à vida de Violeta e lê-se com o ímpeto de um pensamento.

Escrever um livro assim é de uma capacidade surpreendente. Virei página depois de página sempre com a certeza de que, por muito que um livro exija de quem o escreve, é em livros como este que se distingue quem realmente tem o dom. E Dulce Maria Cardoso tem-no sem dúvida alguma.

“… não consigo estar acompanhada por muito tempo, nunca me habituei à presença dos outros, ainda não deixei de me espantar com os que não conseguem comer ou dormir sozinhos, com os que se queixam de solidão, talvez sejam felizes os que conseguem suportar os outros, mais felizes ainda os que precisam dos outros,…” (Pág. 25)

“… quando os dias são todos iguais há forçosamente um desentendimento com a vida,…” (Pág. 66)

“… não há nada que sobreviva ao silêncio, nada,…” (Pág. 148)

“… sonho muitas vezes que estou a voar, é um sonho muito vulgar mas conheço quem nunca tenha sonhado que voava, aliás há pessoas que não sonham, dormem apenas, limitam-se a dormir, deve ser muito triste,…” (Pág. 342)

Sinopse

“É uma noite de temporal. A noite do acidente. Há uma gota de água suspensa num estilhaço de vidro que teima em não cair. Há um instante que se eterniza. 
Reflectida na gota, Violeta mergulha nessa eternidade e recorda aquele que pode ter sido o último dia da sua vida. Na verdade, as memórias desse dia contam toda a história de Violeta: os pais, a filha, a criada, o bastardo, e em todos a urgência da vida, que prossegue indiferente, como a estrada de onde ainda agora se despistou. Nessa posição instável, de cabeça para baixo, presa pelo cinto de segurança, parece que tudo se desamarra. O presente perde a opacidade com que o quotidiano o resguarda, e Violeta afunda-se nos passados de que é feita, uma espiral alucinada de transparências e ecos.”

Tinta-da-china, 2014

Agosto 04, 2015

Tudo o que poderíamos ter sido tu e eu se não fôssemos tu e eu - Albert Espinosa - Opinião

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O título é excelente. A primeira página é fabulosa. O anzol está lançado e o peixe apanhou o isco.

Provavelmente mais vale não escrever nada do que escrever sobre livros que me fazem sentir assim-assim, mas eu gostava tanto de ter adorado este livro, que me foi recomendado, que tem uma capa óptima e um título como poucos.

Mas a verdade é que “a estranha história de amor que encantou todo um país” não me encantou realmente. O livro tem passagens muito boas, que inevitavelmente sublinhei, e que surgem ocasionalmente a iluminar uma narrativa algo repetitiva e, para mim, não suficientemente verosímil.

“Não é para demonstrar seja o que for, quero apenas chegar onde se chega quando entregamos a nossa vida inteira e tudo o que somos a uma única coisa.” (Pág. 21)

Marcos quer ficar acordado para sempre, e até pode pois comprou uma injecção para isso, tem uma relação especial e estranha com a mãe, que por acaso acabou de morrer, sente uma empatia especial com uma mulher que vê da janela, e tem um dom único. Premissas estranhas, não necessariamente más, mas que infelizmente não me deram o alento que procuro numa leitura, e que esperava obter deste “Tudo o que poderíamos ter sido tu e eu se não fôssemos tu e eu”. Excelente título que se explica mesmo na última página. Mas quem quiser ler não comece pelo fim. Nada de batota.

Não me arrebatou. Mas há potencial para deliciar outros leitores. Arrisquem.

"Não sei se o meu dom me encontrou a mim ou eu a ele. O meu dom…É difícil de explicar. Como aprendi a utilizá-lo é ainda mais estranho de relatar. Como acabei por trabalhar para Eles, acho que também não é nada simples de explicar. Mas quero contar-vos. Há coisas, pequenos detalhes, que formam parte de nós próprios e nos fazem ser como somos. E o dom era algo que me definia. Ainda que o utilizasse muito pouco. Fazia-me sentir mais vivo. Se estivesse a usar o dom quando vi a rapariga do Espanhol talvez não tivesse sentido o mesmo por ela. O que senti foi primário, foi muito autêntico. Como podia ter tantas saudades dela sem a conhecer? O ser humano é mágico e indescritível. Sentia algo especial ao voltar a recordá-la. Aquela confiança não deve surgir entre desconhecidos mas que às vezes existe e é mais intensa do que a que sentimos por alguém que faz parte do nosso ambiente há mais de vinte anos. Ela não se tinha apercebido da minha presença, não tinha sentido que os meus olhos não se tinham afastado dos dela nem por um instante"

Babel, 2011

Tradução de Cláudia Clemente