Por vezes há livros que não me dizem nada. E se de início a leitura não me envolve, e aqui vejo o claro inconveniente de ter muitos livros por ler, deixo de lado e passo para outro. O osso da borboleta foi um desses livros que me custou começar, não percebi o início, francamente não sabia o que estava a ler, não entendi, não me identifiquei.
Foram vários os motivos que me fizeram continuar. Alguma futilidade, pois os livros da Tinta-da-China são lindos e é um prazer tê-los nas mãos. Algum sentido prático, pois este é o livro da leitura em grupo para a sessão de Fevereiro da Comunidade de leitores Leya e grupo. E, a partir de uma certa altura, o verdadeiro interesse, na medida em que a acção se passa numa cidade que, pelas descrições, me começou a ser demasiado familiar, e que decidi que, para mim, seria a cidade onde cresci.
A partir deste momento criei o meu palco, e um palco conhecido ainda por cima, portanto tinha de continuar a conhecer as personagens que vivem, se movimentam e interagem nas ruas que eu conheço, habitam casas localizadas em bairros que eu sei onde ficam, conversam sobre edifícios e locais que eu sei quais são.
A partir daqui criei uma ponte válida para continuar, para conhecer um livro que se revelou, aos poucos, uma maravilha, oscilando entre passado e presente de forma hábil, construindo vidas para as quais eu fui atribuindo caras, permitindo-me o meu próprio exercício ficção/realidade. Se teria sido uma leitura mais interessante considerando uma cidade desconhecida, sem ruas definidas na minha cabeça, nem rostos reais a quem atribuir estórias? Talvez. Mas assim criei uma forma peculiar e interessante, e até pessoal, de prosseguir a leitura.
Foi o primeiro livro que li de Rui Cardoso Martins e, após um começo sinuoso, a escrita peculiar do autor foi-me convencendo e agradando cada vez mais. Apesar de não ter mencionado acima, o estilo pouco óbvio e a forma de dar só um pouco de cada vez ao leitor, foram também determinantes para que, mesmo sem dar por isso, me fosse agarrando mais ao livro. Constrói a narrativa de forma lenta mas sustentada, criando bases e razões para as atitudes das personagens, aguçando o interesse e dando a sensação de fim, de que tudo se vai fechar e fazer sentido.
Se no inicio é apresentado um homem que vive isolado e escondido num sótão, envolvido num mistério e secretismo que pode funcionar como uma construção caricata para suscitar a dúvida e fazer o leitor prosseguir, apesar de, como já referi, esta personagem inicial não me ter impulsionado para a leitura, antes me provocou estranheza e até algum asco, a narrativa vai fazendo surgir outras personagens com vidas que se tocam no presente mas com passados que se vão descobrindo devagar, numa leitura, agora sim, prazerosa e suculenta.
Se estivesse ao meu alcance classificar um livro de forma objectiva, “O osso da borboleta” seria um gráfico ascendente, demonstrativo do crescente empolgamento que me proporcionou. É sem dúvida um exemplo a reter de que, por vezes, vale a pena insistir, superar dificuldades e resistências para descobrir algo superior, que me levou muito além do que pude esperar. Um autor para continuar a descobrir.
Sinopse
“Uma cidadezinha atlântica portuguesa, hoje. Tem praia, casino, pescadores, bandidos, o rasto dos refugiados judeus da Segunda Guerra. Nesta terra consumida pela grandeza do passado — ou a falsa memória de que já foi grande — um homem escondeu-se do mundo, num sótão. Fala com as pombas e com deusinhos gregos, tem um Olimpo de vitrine. É ladrão mas não o admite. Quem não fez isto e aquilo e aqueloutro naquela altura? A vizinha de baixo arrasta as pantufas da velhice e da solidão, insulta as suas flores. Já foi a mais bela mulher da cidade. Purificação, ou melhor, Borboleta, antiga especialista em palpites de jogo. O passado vem ter com ela: um deus da província e do dinheiro sujo quer esmagá-la. Borboleta sai à rua e defende-se. Morre o cão, acaba a raiva.
O Osso da Borboleta é um relato em directo do último século de um país, Portugal, que não encontra lugar no mundo. Da aflição das pessoas que procuram a felicidade, de fracasso em fracasso. Uma comédia humana em que, para nossa alegria, o mal pode ser envenenado e a vida continuar.”
Tinta-da-China, 2014