É perigoso ter expectativas altas. Mas como não as ter com a forma como este livro me foi apresentado? Numa sessão da Roda dos Livros, com a presença de alguns autores do Colectivo NAU, Ana Saragoça ofereceu-nos uma interpretação do primeiro capítulo do seu livro, “Todos os Dias são Meus”.
A Porteira que todos ficámos a conhecer, remeteu-me para a comédia. Mais uma coisa perigosa. Pois eu acho piada a muita coisa mas o verdadeiro humor é algo difícil de criar, mais fácil é fazer chorar do que rir. Rir a sério, com vontade. Nessa tarde chorámos a rir.
Fiquei com a ideia de um livro cómico, bem escrito e bem descrito, que saber escrever é importante, mas descrever é fundamental. E já não é nada pouco. Agora, depois de ler o livro, confirmo o talento da autora para o registo humorístico e caracterização brilhante de personagens.
É inevitável que a Porteira, mesmo sem nome, não nos lembre de alguém que conhecemos, vimos, ou simplesmente ouvimos falar. Brilhantes e inesquecíveis monólogos, supostamente diálogos. Sabemos que a Porteira se dirige sempre a alguém mas não há discurso, o que faz com que Ana Saragoça seja, para mim, o mais recente génio da (boa) utilização da pontuação.
E quando as expectativas altas são largamente ultrapassadas? Olho para este livrinho pequeno (cem páginas, tamanho de livro de bolso e capa pró feioso) e não páro de fazer a mim própria duas perguntas: como se consegue dizer tanta coisa com tão poucas palavras, e como é possível que este livro não seja divulgado? Até vou mais longe, toda a gente devia ser obrigada a ler “Todos os Dias são Meus”! Deviam, sim. Deviam ficar todos convencidos que íam passar umas horitas a ler um livro leve, passado num prédio, com intrigas típicas de uma vizinhança estranha (não são todas?), com abordagens hilariantes a um cão que vomita no elevador. E depois de estarem bem convictos de terem em mãos uma leitura leve para acompanhar com pipocas, seria como se se deixassem cair pelo fosso do elevador da vida real.
E foi essa sensação de abismo, de cair do chão que tinha como certo, que me fez chegar a esse ponto maravilhoso e raro que se resume na simples frase “isto ainda me saíu melhor que a encomenda”! Literalmente. Pois que como todas as coisas boas são raras, este teve de ser encomendado directamente à Editora. Acho que a Estampa não sabe o que é divulgação e marketing, honestamente não percebo porquê esconder este tesouro.
E pronto, afinal o livro não é cómico. É um policial! Uma das moradoras aparece morta no elevador do prédio, o mesmo onde o cão da porteira vomita. E onde também o Engenheiro e a namorada passam uns bons momentos de prazer físico…olha, afinal o livro é erótico, enganei-me outra vez…e depois há a reflexão da vítima (antes de morrer) sobre a vida, a solidão e a sensação de não pertencer a lugar nenhum… ai que afinal isto é um drama assim para o filosófico!
Eu não sei o que é. Mas sei que é bom. Muito bom!
Uma escrita de qualidade irrepreensível. Um livro do qual achava que já sabia tudo e que se revelou uma fabulosa surpresa.
Imperdível! Leiam!
“Olhar para as janelas das casas ensinou-me muito. Vi que as pessoas são realmente muito parecidas umas com as outras, e que eu sou gritantemente diferente. Mesmo quando havia discussões e gritaria, eu conseguia retirar sempre das visões uma sensação de grande aconchego, de pertença.” (Pág. 33);
“Sempre li muito. Não me lembro de mim pequena sem um livro por perto – o que deve querer dizer que a minha vida consciente só começou quando descobri a leitura. Os livros afastavam-me de quem me rodeava, das colegas que faziam troça de mim, da realidade melhor-que-a-de-muita-gente-mas-ainda-assim-bastante-desoladora da minha infância. (…) , acabaram todos por me deixar em paz, arrumando-me na prateleira das caixas d’óculos vagamente apalermadas. O resultado foi uma grande liberdade interior, que é a minha riqueza maior até hoje.” (Pág.59);
Sinopse
“Um prédio. Uma morte. Um mistério. Não se trata, porém, de um romance de pretexto policial. É verdade que há polícias e testemunhas - sobretudo testemunhas - e alguns suspeitos. Mas Todos os Dias são Meus é um extraordinário retrato do Portugal profundo, com os seus tiques, os seus ressentimentos, os seus ridículos.”
Editorial Estampa, 2012