Tenho lido alguns livros sobre lares disfuncionais e famílias imperfeitas, mas penso que nenhum com um sentido crítico tão acutilante e uma ironia tão lapidar como “Os Idealistas” de Zoe Heller.
Se já tinha gostado da escrita e estilo da autora em “Diário de um escândalo”, é com “Os Idealistas” que revela, a meu ver, uma capacidade de análise e de exposição admiráveis.
Audrey e Joel conhecem-se numa festa em 1962 e de imediato iniciam uma relação que os leva numa viagem por um casamento de quarenta anos. Ambos com ideais políticos e religiosos muito vincados, e activistas das suas convicções, vivem num caos doméstico delirante e em constante conflito com todos os que se opõem ao seu modo de analisar a realidade.
Possivelmente o casal menos apto a ter filhos, na medida em que simplesmente a maternidade/paternidade não se enquadra com as suas personalidades. É em Audrey que esta limitação é mais vincada, pois que para Joel tudo é bastante indiferente desde que possa lutar no tribunal a defender aqueles que todos condenam, numa posição marcadamente oposta e conflituosa com a sociedade.
O sentimento maternal (ou falta dele) de Audrey é descrito de forma genial por Zoe Heller, que consegue provocar um sentimento de desprezo e ódio no leitor em relação à mãe, ao mesmo tempo que explica os motivos das suas atitudes, e me deixou a destilar um misto de ódio e compreensão pela detestável Audrey.
O casal tem duas filhas biológicas e um filho adoptado. Rosa segue o chamado religioso das suas origens judias e é completamente arrasada pelos pais, ateus convictos, num total desrespeito e desprezo pelas suas opções. Karla é uma obesa que adora comer e a quem a mãe trata de forma deplorável por ser gorda, ou talvez porque a trataria de forma deplorável de qualquer forma. Com uma mãe rígida e autoritária que não admite ideias diferentes das suas e um pai que simplesmente se está nas tintas, Rosa e Karla procuram o seu caminho numa solidão familiar aterradora. Quando adoptam Lenny, Audrey sente pela primeira vez o que pode ser uma pequena centelha de amor maternal. Curiosamente (ou não) este filho torna-se um toxicodependente problemático, que abusa da margem de manobra que tem de, inexplicavelmente, ser o filho favorito, manipulando Audrey de forma tão flagrante que por vezes me senti estranhamente “vingada” pelas atrocidades cometidas com as duas filhas.
“Até esse momento na sua vida, Audrey nunca mostrara o menor sentimentalismo por crianças. Na medida em que as identificava como pertencentes a uma categoria independente de ser humano, tinha a tendência para as considerar como estagiários humanos. (…) Ainda se sentia algo chocada com o servilismo da maternidade – a servidão pura a gratuita envolvida. Toda a limpeza das porcarias, pelas quais não era responsável, e a preparação de refeições que não lhe apetecia comer. Alimentava as suas raparigas regularmente, e lavava diligentemente os seus dentes duas vezes por dia, e assegurava-se que estavam mais ou menos adequadamente vestidas para as estações do ano mas, para além de um sentimento amorfo de satisfação por ter cumprido as suas funções maternais, não tinha qualquer prazer no desempenho destas tarefas. (…) Nunca sentira remorsos pela sua falta de zelo maternal. Pensava que esta sua atitude pela maternidade era a resposta sensata. (…) Mas algo tinha mudado na noite que encontrara Lenny no apartamento de Harlem.” (págs. 161/162)
Quando Joel tem um AVC no tribunal, em plena sessão de um julgamento, e entra em coma sem perspectivas de recuperação, Audrey descobre que o marido lhe foi frequentemente infiel, e que teve um filho com outra mulher. É então que este livro se revela a história do desmoronar do mundo de Audrey, e a sua caminhada em sofrimento pelas atrocidades que enfrenta, revelando a sua força ao manter a sua postura de mulher detestável perante os outros, mas sofrendo terrivelmente de uma forma que nem para si própria admite.
A forma como Heller me fez reflectir sobre as atitudes de Audrey, e sobre a forma que, todos nós, por vezes transmitimos uma imagem oposta ao que na realidade somos e sentimos, deu-me um enorme prazer na leitura deste livro. Diferente, que certamente não agradará a todos, mas que despertou em mim um gosto irresistível por uma escrita pouco óbvia, que por vezes tive de “mastigar” para atingir a pertinência de algumas questões e, acima de tudo, a extraordinária acutilância da autora.
Um título a reter, que recomendaria sem qualquer reserva, não fosse a forma irritante e despropositada como todas as notas fundamentais à compreensão de certas partes da narrativa, são remetidas para o final do livro. Não sei se esta estrutura partiu da autora, da editora ou da tradutora, mas arrasa com um livro que poderia ser perfeito. Dado que esta parte se chama “Notas da Tradutora” sou tentada a considerá-la culpada e gostava de saber se tem alguma coisa contra as notas de rodapé.
Sinopse
“Quando Audrey descobre um segredo devastador sobre o seu marido, um advogado nova-iorquino activista político, vê-se forçada a reavaliar todas as suas certezas em relação a um casamento de quarenta anos. Mas também os filhos do casal verão as suas vidas abaladas pelo súbito terramoto emocional que se vem juntar aos muitos dilemas que já lhes perturbam os dias e que desencadeia, em cada um deles, uma crise de identidade. Uma farsa familiar hilariante e negra, onde tragédia e comédia se entretecem numa malha subtil e sarcástica, que fascina desde logo o leitor pela forma soberba como as personagens surgem iluminadas e pela perspicácia com que Zoë Heller se move nas áreas mais profundas e desconfortáveis da natureza humana.”
Presença, 2011