Já tenho este livro em casa há uns anos. Agora, motivada pela estreia do filme, decidi lê-lo. Depois de o ler acho que não quero ver o filme. Continuo curiosa mas muito receosa da adaptação que tenha sido feita de um livro que considero brilhante.
Um livro com tantas palavras que, chegada ao fim, me deixou sem elas, como se tivesse tudo dito e perfeitamente exposto. Não sei se o considere real ou imaginário, se o que li é ou poderia ser verdade, por vezes fez-me acreditar, noutras questionar e, tentei, ao longo de mais de 400 páginas perceber sobre o que era este livro. Não sei se percebi, se captei a sua essência e interpretei a mensagem do autor. Considero-o uma busca, um percurso que não acaba, nem mesmo quando viramos a última página.
Existem coincidências? Vidas semelhantes? Ou simplesmente procuramos o caminho das respostas no sentido do que queremos? Vivemos coincidências ou consideramo-las como tal porque fazem sentido para o que queremos e acreditamos?
“Comboio Nocturno para Lisboa” é complexo e intricado como se pode tornar a vida de quem nunca deixa de procurar, de seguir pistas e questionar tudo, desde a existência e o poder de Deus, ao papel da família a moldar personalidades e definir comportamentos.
Um livro faz Gregorius deixar Berna e partir para Lisboa. Nele surge a necessidade de saber tudo sobre Amadeu de Prado, autor do livro. Assim, sem explicações, porque tem de ser. Porque se envolve e identifica. Porque precisa de encontrar o rasto de Amadeu e reconstruir todos os seus passos. Ou será que anda à procura de si próprio e a construção da vida de Amadeu é uma viagem ao fundo do seu eu?
Muda subitamente da País, começa a aprender português e monta o puzzle da vida de Amadeu, o médico brilhante que queria escrever, que salvou todas as vidas que pôde inclusive a vida que o fez mudar para sempre. Independente e forte mas na verdade com muitos medos, age por impulso e deixa um legado ideológico maravilhoso. Os seus escritos guiam os passos de Gregorius, que desenterra Amadeu junto dos que lhe foram próximos e ainda estão vivos.
Uma escrita poderosa e plena de significados. Penso que “Comboio Nocturno para Lisboa” se poderá ler tantas vezes quantas aquelas que quisermos descobrir outras perspectivas.
“Gregorius pôs-se a caminhar pela cidade nocturna. Andar pelas ruas de uma cidade depois da meia-noite era algo a que ele se habituara desde que, aos vinte e tal anos, perdera a capacidade de adormecer facilmente. Vezes sem conta calcorreara as vielas vazias de Berna, parando, de quando em quando, para escutar, como um cego, os solitários passos que iam e vinham. Gostava de ficar parado em frente às montras escurecidas das livrarias, tomado pela sensação de que nessas alturas, em que os outros dormiam, todos aqueles livros lhe pertenciam só a ele.” (Pág. 67).
“- O Amadeu adorava o salão, os livros. “Tenho tão pouco tempo Adriana”, queixava-se muitas vezes, “quase não tenho tempo para ler; talvez devesse ter ido mesmo para padre.” Mas ele queria que o consultório estivesse sempre aberto, de manhã à noite. “Quem tem dores ou sente medo não pode esperar”, costumava dizer quando eu via que ele estava exausto e o tentava refrear. Lia e escrevia à noite, quando não conseguia dormir. Ou talvez não conseguisse dormir porque tinha a sensação de que tinha de ler, escrever e pensar, já nem sei.” (Pág. 111).
“No eléctrico, a caminho de Belém, sentiu de repente que a sua relação com a cidade estava prestes a modificar-se. Até aí, Lisboa tinha sido, única e exclusivamente, o palco das suas investigações, e o tempo que a atravessara ficara marcado pela sua pretensão de vir a saber cada vez mais acerca de Prado. Mas quando agora olhava lá para fora, através da janela do eléctrico, o tempo em que ele se arrastava, rangendo e chiando, pertencia-lhe por inteiro a ele, e passara a ser, simplesmente, o tempo que Raimund Gregorius vivia a sua nova vida.” (Pág. 291).
Sinopse
“Tudo começa numa manhã chuvosa. Uma mulher prepara-se para saltar de uma ponte de Berna. Raimund Gregorius, um banal professor de grego e latim de 57 anos, evita o acto desesperado e fica surpreendido com o som de uma palavra. Português, responde ela, ao ser questionada sobre a língua que fala. Antes de desaparecer da história ainda tem tempo de escrever um número de telefone na testa deste míope professor que descobre, por acaso, um livro de um autor português, Amadeu Inácio de Almeida Prado, intitulado Um Ourives das Palavras. Sem conseguir explicar porquê, entra num comboio para Lisboa atrás deste médico que morreu 30 anos antes, em 1975, pouco depois da Revolução, numa descoberta do outro que acaba por ser uma descoberta de si próprio. Amado pelos pobres que atendia de graça no seu consultório, Amadeu passa a ser rejeitado pelo povo no dia em que aceita tratar o "Carniceiro de Lisboa", assim conhecido por ser chefe da polícia política. Integrará posteriormente a resistência contra o regime de Salazar. Porquê Portugal? Porquê a ditadura de Salazar? Estas são as perguntas mais feitas a um autor que admira Pessoa, "esse gigante da literatura", há mais de 20 anos, e escreve um livro do desassossego com a escrita de Prado a assemelhar-se aos textos do poeta português.”
D. Quixote, 2008