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planetamarcia

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Abril 28, 2013

Homer & Langley - E. L. Doctorow - Opinião

 

“No dia 21 de Março de 1947, um anónimo ligou para uma esquadra da polícia nova-iorquina a avisar que a residência dos Collyer emanava um cheiro a cadáver. Uma patrulha forçou a entrada na casa e encontrou Homer Collyer morto de má nutrição, desidratação e paragem cardíaca. Como o cheiro persistia, a polícia começou as buscas pelo corpo de Langley, que foi encontrado somente no dia 8 de Abril, a apenas três metros de onde Homer se encontrava. Langley ia a rastejar por um dos túneis de fardos de jornais, para levar comida ao irmão cego e paralisado, quando acionou uma das suas armadilhas, ficando soterrado debaixo de uma pilha de coisas. A polícia retirou 140 toneladas de objetos do interior da casa nº 2078 da Quinta Avenida. O caso tornou-se uma espécie de mito urbano.”

Nota da tradutora (Tânia Ganho) presente na última página do livro.

Pode parecer estranho começar pelo fim. A verdade é que o que mais fascinou neste livro foi a forma como o autor partiu de um facto conhecido e criou todo um conjunto de situações. Na verdade criou vidas inteiras para os irmãos Collyer; relata os seus percursos desde a infância até ao dia em que são encontrados mortos na sua própria casa, rodeados de uma incrível coleção decadente de toda a espécie de coisas.

Nem por um momento se perde o interesse nesta leitura por se conhecer o desfecho, na realidade é o final conhecido que alimenta a leitura, a necessidade de conhecer o percurso, de entender o cenário desta notícia.

O narrador é Homer, o irmão cego, como o próprio se apresenta. É peculiar que as mais fantásticas descrições nos cheguem pela voz de um cego. Apesar de não ver, Homer tem um sentido de orientação único graças a uma excelente memória dos tempos que ainda podia ver, e também devido aos restantes sentidos, que são apuradíssimos, principalmente o olfato. Mas ainda, e muito principalmente, devido à sua fantástica intuição.

Cultos e endinheirados, Homer & Langley, tiveram de encarar uma realidade para a qual não estavam preparados após a morte dos pais. Por sua conta e sem preocupações de maior, pelo menos as preocupações que assolam a maioria de nós, deixaram-se levar numa vida pautada pelo desleixo, ao sabor dos acontecimentos da História recente da América e do Mundo.

A sua casa torna-se o seu refúgio, mas também o refúgio do toda a espécie de tralha que acumulam. É difícil imaginar uma mansão da Quinta Avenida em Nova Iorque “recheada” de jornais velhos, mas a verdade é que Langley passou a vida a colecionar notícias para um dia ver nascer o projeto do seu próprio jornal, que seria uma amálgama de tudo o que foi registando como acontecimento.

Um carro (Ford T), bicicletas velhas, pneus, geradores para quando por desleixo deixaram de pagar a luz (mais tarde passariam às velas), baldes para quando lhes cortaram a água por falta de pagamento (também por desleixo), e todo um surgimento de vida animal que a falta de limpeza proporciona.

Estranhos, mas de uma humanidade surpreendente, Homer & Langley acolhem por diversas vezes hóspedes muito especiais. Desde uma casal de Japoneses ostracizado pelos factos históricos, a um grupo de hippies que se identifica totalmente com este modo de vida de decadência, passando por um perigoso grupo de gangsters, vários são os visitantes com quem coabitam até se tornarem uns eremitas cujas vidas se confinam ao espaço da sua casa, que no limite se torna extremamente reduzido devido à colossal quantidade de objetos de que se fizeram rodear.

Bem escrito e bem estruturado, Homer & Langley surpreende e apetece ler devagar, prolongando ao máximo o prazer único que só os livros brilhantes permitem.

Obrigatório.

“E quando estes miúdos – foram cinco os que se soltaram do grupo maior e subiram os degraus de nossa casa, dois homens e três mulheres – viram o armazém de preciosas aquisições em que se tornara a casa, ficaram comovidos até dizer chega. Escutei o silêncio, que me pareceu digno de uma igreja. Ficaram parados na penumbra da sala de jantar, a olhar pasmados para o Modelo T com os pneus esvaziados e as teias de aranha de anos e anos drapejadas sobre a carroçaria, como uma intricada trama, e uma das raparigas, a Lissy exclamou: Oh, uau! E eu considerei a hipótese, tendo bebido demasiado do vinho deles de má qualidade, de o meu irmão e eu sermos, ipso facto, quer quiséssemos quer não, profetas de uma nova era.” (Pág. 119/120)

Sinopse

“Homer e Langley Collyer tornaram-se uma lenda tragicómica de Nova Iorque quando foram encontrados soterrados debaixo de toneladas de lixo acumulado na sua mansão, na Quinta Avenida. Transportados para o mais recente romance de E.L. Doctorow, estes personagens delirantes - Homer, cego e intuitivo, e Langley, abandonado à loucura, ou à genialidade, após servir na Primeira Guerra Mundial - tornam-se os cicerones de uma visita guiada à América do século XX e aos becos sombrios da mente humana.
Uma intensidade narrativa quase hipnótica.
Um retrato singular da condição humana.”

Porto Editora, 2013