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Foram duas as principais motivações para esta leitura: conhecer o trabalho de Dulce Maria Cardoso, de quem ainda não tinha lido nenhum livro, e sentir a perspetiva daqueles que tiveram de abandonar as suas casas e vidas para viajar para um país novo, começar do zero, muitas vezes sem nada.
A autora escreve num estilo próprio e muito particular. Desde as descrições, a forma expressiva como nos apresenta os cenários, ou os pormenores de pontuação. Tudo é muito característico e único. Tentei tecer comparações para melhor exprimir este meu parecer, e se de facto encontro algumas similaridades com a escrita de Miguel Real (exceto na brilhante forma de pejar as frases de adjetivos característica do autor), ou se por vezes me lembrou os longos parágrafos de Saramago, a conclusão é de que Dulce Maria Cardoso tem o seu próprio género, a sua forma de escrever. E isto é, sem dúvida, um dos maiores elogios que se pode fazer a um escritor.
Apesar de muito rica, de se socorrer da pontuação de forma hábil e original, a sua escrita representa muitas vezes um desafio. A vírgula é utilizada quase em exclusividade, serve de marcador para mudanças e, quase sempre, para compor diálogos. Esta originalidade é muito positiva pois desenvolve a atenção de quem lê, mas por outro lado torna por vezes a leitura cansativa, pela forma como exige o constante alerta do leitor. Sugiro algumas pausas para absorver e aproveitar melhor este livro.
O tema, duro, também não permite descontração. Surpreende e choca por ter realmente acontecido no nosso país, ou se quisermos no “nosso império”.
Provações e dificuldades para milhares de portugueses que foram descriminados e considerados “portugueses de segunda”, depreciativamente identificados como “retornados”.
Só quem perdeu tudo pode avaliar o que é começar de novo. O facto de o narrador de “O Retorno” ser Rui, um adolescente cuja vida é de certa forma interrompida por uma fuga súbita e uma queda numa metrópole onde não tem casa, nem roupas, nem a sua família completa, é revoltante. A angústia descrita por este quase menino e quase adulto, fez-me sentir medo da maldade humana e incompreensão por toda esta sucessão de acontecimentos políticos e sociais que marcaram a nossa história recente, e ainda hoje deixam (inevitavelmente) as suas marcas.
“São tempos conturbados”. Uma frase mencionada repetidas vezes que, pela insistência, cheguei a achar cómica.
“Mas a mãe tem razão, o pai fala melhor do que um doutor, e um a um conseguiu convencer os cinco sócios, eu sei que esta terra não é abençoada como as de lá, eu sei que esta terra pede-nos suor, lágrimas e sangue e em troca dá-nos um pedaço de pão duro, mas também sei que numa coisa esta terra não é diferente de nenhuma outra, nem mesmo das mais abençoadas, esta terra não rejeita o que lhe põem em cima, isso também eu sei, e é por isso que vos digo que o futuro passa pelo que se vai pôr em cima desta terra, casas, estradas, hospitais, escolas. É quase impossível não ficar entusiasmado ao ouvir o pai falar com tanta certeza. E foi assim que o pai conseguiu arranjar os cinco sócios para a fábrica de cimento. E foi assim que o pai e os sócios se tornaram devedores de sete mil e novecentos contos fora os juros que ainda nem se sabe quanto será, porque o dinheiro fica mais caro todos os dias.” (pág. 257)
Sinopse
“1975, Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos nao têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles. 1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe.”
Tinta da China, 2012