Em “Os Cadernos de Dom Rigoberto” temos, de certa forma, uma continuação do “Elogio da Madrasta” que li recentemente. Os acontecimentos do passado condicionam a relação entre Dom Rigoberto e Dona Lucrécia, agora separados. Fonchito já não é vértice neste triângulo, assume mesmo uma postura ativa na reconciliação do pai e da madrasta.
À medida que se sucedem os “episódios” desta possível reunião, o leitor vai sendo agraciado com as fabulosas considerações, pensamentos e análises de Dom Rigoberto. Nos seus cadernos expõe temas tão diversos como a homossexualidade, as organizações de beneficência, as imposições sociais e políticas, a pressão profissional. Tudo é alvo do seu escrutínio pessoal e perspicácia, a sua ironia e humor são uma verdadeira dádiva, um dos muitos pontos reveladores do brilhantismo de Llosa que, mesmo que se esforce, não deve conseguir escrever mal.
Dom Rigoberto dedica-se aos livros e à arte de forma total, obtendo um prazer único da cultura, e de tudo o que lhe permite aprender e enriquecer a nível intelectual. Não se considerando intelectualmente superior, descreve sem rodeios que o ser humano pode escolher entre evoluir ou estagnar. A cultura é um ponto essencial, uma forma de liberdade e escape da opressão social e profissional, o conhecimento é sempre a forma pela qual o individuo “se desintoxica da espessa crosta de convencionalismos embrutecedores, vis rotinas.” (pág. 230)
Um esteta, um verdadeiro apreciador dos prazeres da vida, atribui ao sexo e ao desejo físico um patamar de importância elevada e cuidada, tendo sempre na “sua” Dona Lucrécia o único objeto de desejo. Monogâmico e sofredor pela separação, apenas na sua imaginação atinge picos, vivendo recordações das noites ardentes do seu casamento.
A vida de Dom Rigoberto está nos seus cadernos, a que recorre continuamente, meditando sobre o passado, expondo pontos de vista, escrevendo sobre o que gosta e sobre o que o atormenta. Mas é Dona Lucrécia o expoente máximo do prazer na sua vida. O ponto de onde tudo parte e onde tudo termina, o seu tudo e o seu nada. O desejo constante por ela eleva-lhe de tal modo a criatividade que vive a imaginação como se de realidade se tratasse. A mim aconteceu-me durante todo o livro considerar as suas divagações realidade, deixar-me levar e acreditar que os cenários criados pudessem estar fora dos seus cadernos.
Este é o livro onde provavelmente fiz mais marcações e retive frases, tal a forma como me identifiquei com Dom Rigoberto, uma espécie de cavaleiro branco da busca constante do conhecimento e da sabedoria. Um livro com passagens que me marcaram profundamente. A reler, pelo menos algumas partes.
“Um rebanho, como se sabe, é composto por gente sem voz própria e de esfíncter mais ou menos débil. É um facto comprovado, aliás, que, em tempos de confusão, o rebanho prefere a servidão à desordem. Daí que aqueles que agem como cabras não tenham líderes mas sim cabrões. E alguma coisa se nos deve ter pegado dessa espécie quando no humano rebanho é tão comum esse dirigente capaz de conduzir as massas até à beira do recife e, uma vez ali, fazê-las saltar para a água. Isto se não lhe ocorrer assolar uma civilização, que é uma coisa também bastante frequente.” (Pág. 119)
“(…)consegui encher o meu escritório de livros, gravuras e quadros que me couraçam contra a estupidez e a vulgaridade reinantes e formar um enclave de liberdade e fantasia onde , todos os dias, melhor dizendo todas as noites, consegui desintoxicar-me da espessa crosta de convencionalismos embrutecedores, vis rotinas, actividades castrantes e gregarizadas que você fabrica e das quais se alimenta, e viver, viver de verdade, ser eu mesmo, abrindo aos anjos e demónios que me habitam as portas gradeadas atrás das quais – por sua causa, sua – são obrigados a esconder-se o resto do dia.” (Pág. 230)
Sinopse
“”Tenho o feiticismo dos nomes, e o teu enleva-me e enlouquece-me. Rigoberto! É viril, é elegante, é brônzeo, é italiano. Quando o pronuncio, em voz baixa, corre-me uma cobrazinha pelas costas e gelam-se-me os calcanhares rosados que Deus (ou, se preferes, a Natureza, descrente) me deu. Rigoberto! Ridente cascata de águas transparentes. Rigoberto! Amarela alegria de pintassilgo a celebrar o sol. Onde estiveres, estou eu. Quietinha e apaixonada, eu aí.”
Mario Vargas Llosa ao criar em Os Cadernos de Dom Rigoberto um mundo de erotismo, sensualidade, desejo e paixão, transporta o leitor para todo um universo de sonho ousado e arrojado, criado pela imaginação fértil de um reservado corretor de seguros. Um livro que é a apologia perfeita do amor em estado puro.”
D. Quixote, 2010