Este livro é nosso, no sentido de ser português. Foi escrito por um talentoso observador, um colecionador de memórias, até um ladrão de situações. João Ricardo Pedro é um “Escritor-Ladrão”, pela forma como absorve e rouba tudo em seu redor, desconfio que o faça desde sempre. Rouba o quotidiano, episódios banais transformados num texto perfeito. Fascinante.
Um livro fácil de ler mas do qual é difícil escrever. Fácil de ler no sentido de cativar, de se tornar cada ver melhor a cada página, de conciliar uma ironia muito particular com um sentido de humor especial, acompanhados de momentos de profunda tristeza e dor. Um livro que é um quadro: uma pincelada aqui, outra ali, que juntas fazem um conjunto que me arrebatou completamente.
É a história de uma família, enaltecida por pormenores curiosos com que todos nos identificamos mas que na realidade poucas vezes vemos nas páginas de um livro. Vão sendo narrados “pedaços de rotinas” por vezes disparatadas e cómicas, histórias dentro de histórias, como se fossem muitos livros dentro de um só.
Ri de puro prazer com as situações inesperadas, desencadeadas pelo que de mais típico caracteriza o “ser português”. Emocionei-me com a dureza das consequências da Guerra Colonial, com o peso da doença no seio de uma família, com todos os fragmentos que fui juntando até completar, à minha maneira, uma história que não tem fim no papel.
João Ricardo Pedro tem um conhecimento da nossa História recente que não é comum na sua (também minha) geração. Senti-lhe gosto pela música e prazer pela arte.
A sua forma de escrever é algo crua e muito direta, contudo flui com uma beleza muito particular. Confesso que me desagradaram os palavrões pois pessoalmente não gosto, mas tenho de admitir que lhes acabei por encontrar enquadramento. Por vezes senti que poderiam ser reveladores de alguma raiva/zanga, vontade de deitar para fora, vontade de escrever, de dar, de mostrar algo que lhe mói por dentro. Enfim, pura especulação minha.
Um livro que é Portugal. Não só Lisboa. Não só subúrbio. Não só interior lá na terra com nome de mamífero (sim fiquem curiosos e no fim pesquisem como eu fiz), um livro sem geografia nem época mas que nos conduz habilmente pelo percurso de várias personagens que se cruzam, se amam, odeiam, vivem e morrem. Tão verdadeiro como o dia-a-dia, como a vida de qualquer um de nós.
E por achar que a minha opinião não é suficiente e nunca será boa perante as marcas que este livro deixou em mim, transcrevo uns excertos, uma amostra de um livro merecedor de uma vida longa, algo raro na nossa sociedade descartável. Apelo aos leitores que lhe deem essa vida, contrariando a tendência ao esquecimento a que as coisas especiais muitas vezes se resignam.
“Mas o outro continuava a plenos pulmões: “Por isso, enquanto for novo e dinheiro não me faltar, adeusinho ò pátria lusa mais as estrofes de Camões, que só um país miserável tem um poeta zarolho como herói nacional. Estou cansado de viras e fandangos. Só me falta vender aquilo que era dos meus pais, lá no cu-de-judas, e, estando isso tratado, é apanhar o comboiozinho para a bendita Europa, que, se formos a ver, só começa em atravessando os Pirinéus.” (pág. 40)
“Dona Laura, para quem as corridas de bicicletas, a par dos homens com brincos, das televisões a cores, dos implantes mamários, das lentes progressivas, dos astronautas e do Ramalho Eanes, eram augúrios de apocalipses, depois de uma manhã inteira ao espremedor e ao fogão, trancara-se no quarto a rezar para que aquilo acabasse depressa, e nem a presença do padre Alberto a demovera da clausura.
O padre Alberto, que torcia pelo Sporting com uma fé inabalável e conhecia pessoalmente as grandes glórias do clube – tinha inclusivamente uma fotografia em que aparecia abraçado ao Jesus Correia -, levantara-se ainda de noite e, com a solenidade que a liturgia exige, aspergira com água benta todo o percurso que atravessava a freguesia, desde o cemitério antigo até à fonte salgada. Um percurso repleto de curvas perigosas, descidas íngremes, bermas traiçoeiras.” (pág.50)
“Depois de um longo silêncio, o médico perguntou-lhe se, quando ouvia essas músicas tocadas por outros pianistas, experimentava a mesma sensação.
Duarte respondeu que nunca ouvia música. Não tinha discos. Não ía a concertos.
O médico perguntou-lhe se gostava de música.
Duarte não soube responder.
O médico perguntou-lhe porque começara a tocar piano.
Duarte disse: “Não fui eu que comecei a tocar piano. Foram as minhas mãos.”” (pág.112)
Sinopse
“Tudo começa com um homem saindo de casa, armado, numa madrugada fria. Mas do que o move só saberemos quase no fim, por uma carta escrita de outro continente. Ou talvez nem aí. Parece, afinal, mais importante a história do doutor Augusto Mendes, o médico que o tratou quarenta anos antes, quando lho levaram ao consultório muito ferido. Ou do seu filho António, que fez duas comissões em África e conheceu a madrinha de guerra numa livraria. Ou mesmo do neto, Duarte, que um dia andou de bicicleta todo nu. Através de episódios aparentemente autónomos - e tendo como ponto de partida a Revolução de 1974 -, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial. Duarte, cuja infância se desenrola já sob os auspícios de Abril, cresce envolto nessas memórias alheias - muitas vezes traumáticas, muitas vezes obscuras - que formam uma espécie de trama onde um qualquer segredo se esconde. Dotado de enorme talento, pianista precoce e prodigioso, afigura-se como o elemento capaz de suscitar todas as esperanças. Mas terá a sua arte essa capacidade redentora, ou revelar-se-á, ela própria, lugar propício a novos e inesperados conflitos?”
Abril, 2012