Abril 02, 2012
Comboio para Budapeste - Dacia Maraini - Opinião
Terminei este livro há uma semana. É agora a primeira vez que tento escrever algo sobre “Comboio para Budapeste”. Uma leitura extremamente dolorosa e marcante, mas absolutamente brilhante. É mais um daqueles livros excecionais que tive a sorte de me vir parar às mãos. Não muito divulgado (infelizmente), tive a sorte de não me ter passado despercebido, e de ter sido um dos meus presentes do último Natal.
A ação decorre no ano de 1956. Amara é uma jornalista Italiana e parte para a Europa de Leste com o objetivo de escrever sobre o ambiente que se vive no pós-guerra. Mas a verdade é que Amara tem o desejo secreto de encontrar Emanuele, seu amigo de infância, de quem se separou quando ainda eram crianças. Emanuele pertence a uma próspera família Judia que se muda para a Áustria, deixando para trás a Itália numa fase em que as perseguições aos Judeus se tornam constantes. Esta é uma decisão de que a família de Emanuele se vai arrepender para sempre.
Amara leva sempre consigo as cartas que Emanuele lhe escrevia, bem como um último caderno de notas do amigo. Os últimos registos de Emanuele são de 1943; Amara crê que ele e a família terão sido levados para um Campo de Concentração – possivelmente Auschwitz. As hipóteses de Emanuele estar vivo são remotas, contudo Amara sente que isso é possível, e segue o seu instinto, mesmo vivendo as maiores dificuldades, numa altura em que a Guerra Fria dificulta as viagens, e mesmo o que encaramos hoje como a mais banal forma de comunicação. No seu percurso vai fazendo contatos que, dadas as circunstâncias, se tornam os seus companheiros de viagem. Hans acompanha Amara ao longo de todo o livro, é um exemplo de amizade e também da forma como as dificuldades aproximam as pessoas, e fazem surgir laços fortes com perfeitos desconhecidos.
Não conhecia a autora. A sensação que fui tento à medida que a leitura avançava é que estava a ler um livro escrito por um homem. Não é fácil explicar esta sensação, talvez se deva ao fato de ser um estilo muito frontal e cru; mesmo as descrições da relação de amizade/amor de Amara e Emanuele enquanto crianças são desprovidas das pinceladas de romantismo típicas das mulheres. Esta particularidade agradou-me muito.
Considero este livro uma lição de História. As dúvidas de Amara são as minhas dúvidas, a minha total incompreensão em relação ao Holocausto. Apesar de Amara ser já uma mulher adulta em 1956, que já teve um casamento e tem um emprego, continua a sofrer com a ausência do amigo e, principalmente, com o sofrimento de milhões de pessoas vítimas de uma ideologia atroz. São muitas as descrições dolorosas de todo o género de tortura e mortandade, tanto que deixei se ler este livro à noite; no dia que concluí a leitura fiquei muito abalada por ter lido tantas páginas de horror de uma assentada. Mas não pude, não consegui, nem quis parar. A verdade doeu-me tal o realismo com que é exposta.
Penso que o maior choque foi o facto de me ter apercebido que uma grande parte dos cidadãos Alemães não sabiam o que na realidade se passava. Há vários testemunhos de quem vivia a meia dúzia de passos da mortandade sem saber que, dentro de alguns anos seria considerado como pertencendo a uma nação de assassinos. As mulheres e filhos dos oficiais que viviam dentro dos Campos de Concentração (obviamente em bonitas moradias e longe o suficiente do horror), não tinham a mínima noção que se gaseavam seres humanos ali ao lado. Esta é a vergonha com que a Alemanha há-de viver para sempre, o de ter deixado a situação chegar a um extremo devido ao secretismo das operações, mas também, certamente, ao facto de ser mais fácil voltar a cara para o lado em vez de encarar a realidade e fazer algo para mudar. Chocante também quem desempenhava as suas funções ao serviço das SS, sendo forçado a participar em ações de chacina e manter o secretismo, chegar ao fim do dia e manter as aparências junto da família. Excelente é também a descrição do horror vivido por parte dos Alemães ao sentirem que a Guerra se aproxima do fim e subsistem ainda demasiadas provas ao alcance do mundo; as “últimas” mortes, perfeitamente evitáveis, são levadas a cabo de forma atabalhoada e desesperada.
Acho que não houve uma página deste livro que me desse descanso do estado de choque constante e de tensão em que me colocou. A intensidade emocional agrada-me mas confesso que me deixou os nervos em frangalhos. Mesmo assim, tenho de admitir que é dos melhores livros que já li, por não me ter deixado indiferente, ter mexido comigo, e principalmente me ter permitido aprender imensos factos históricos que desconhecia. Qualquer Guerra deixa marcas e a II Guerra deixou bastantes e ainda por muitos anos. Em 1956 Amara vive literalmente as duras consequências desse conflito, sente na pele as necessidades que nós hoje não podemos imaginar. Eu pelo menos não consigo imaginar o que será não haver nada para comer nas lojas, haverem filas de racionamento, revoltas constantes nas ruas, nunca se saber se se sai de casa e se dá de caras com um Tanque de Guerra.
E Emanuele? Está vivo? Amara perde muito nesta viagem mas encontra o amigo? E Emanuele, mesmo que esteja vivo, será o mesmo depois de tantos anos de possível sofrimento? Alguém escapa ao horror mesmo sobrevivendo? Sobreviver é viver? Ou é ir morrendo enquanto se vive?
“De repente a luz apagou-se e houve um grito de pavor. No tecto abriram-se umas fendas estreitas e depois ouviu-se um assobio, um silvo inquietante. Aí vem a água, gritou a minha mãe alegremente e recebeu no rosto virado para cima um balde de areia fria. A minha mãe tão ingénua acreditou que seria água. Bem, podíamos começar a ensaboar-nos. Mas aquela espécie de areia que chovia do tecto assim que chocava no chão húmido começava a fervilhar e a crepitar. Entretanto a luz tinha voltado. O que estava a acontecer era tão estranho! Os grãos azulados, em contacto com o chão, desprendiam bolhas azuis que subiam no ar sob a forma de uma nuvem transparente. Era bonita de se ver. Mas, insidiosamente, entrava-nos pelas narinas, pelos lábios e fazia-nos tossir, depois cuspir e depois vomitar e depois… Todos se agitavam para se içarem o mais alto que podiam, para se afastarem daquela nuvem que subia, para se aproximarem das bocas de ferro que pareciam escorrer água. A minha mãe, sem compreender, olhava à sua volta espantada. Mas por poucos segundos. A seguir caíu por terra. Arrastando-me com ela. Não cheguei a gritar, não tinha fôlego. Agarrei-me a ela e disse-lhe: Mutti, o que é que está a acontecer? Mas só mentalmente o repetia porque já não tinha voz. Tinha a garganta apertada num nó inextrincável. Estava a sufocar. Pensei: “O que não daria por uma gota de água, uma gota só, só uma gota” e lambi o tubo de metal que saía da parede precisamente junto ao meu rosto. Nesse momento fui envolto por uma outra nuvem azulada, leve e translúcida. E depois por outra e mais outra. Já não se ouvia o crepitar e os corpos ali estavam, de repente gigantescos e muito brancos e torciam-se, contorciam-se. Quem estava ainda de pé caía, quem respirava começava a ofegar. Desabara o silêncio como uma neve gelada sobre todos nós.” (Pág. 51).
Sinopse
“1956. Amara, uma jovem jornalista italiana, tem como missão redigir um relatório sobre a crescente divisão política entre a Europa de Leste e a Europa Ocidental no pós-guerra. Mas, no seu coração, ela encontra uma outra missão: descobrir o que aconteceu a Emanuele, o seu inseparável amigo de infância. Emanuele era judeu e foi deportado pelos nazis em Viena, durante a guerra, não sem antes lhe dar uma longa série de cartas que Amara ainda carrega com ela. Em sua busca, Amara atravessa a Europa num comboio que pára em todas as estações, tem panos de renda feita à mão a enfeitar os bancos e tresanda a cabra cozida e a sabão de permanganato. Amara visita horrorizada o que resta do círculo infernal de Auschwitz-Birkenau, percorre as ruas de Viena à procura de sobreviventes, chega a Budapeste no momento em que rebenta a revolta húngara, e treme ao lado dos insurrectos quando os tiros dos carros blindados russos esventram as casas. Na sua aventura, e nos destinos dos homens e das mulheres que vêm entrelaçar-se na sua vida, manifesta-se o sentimento de catástrofe e de abismo em que o século XX mergulhou, e a esperança irreprimível de um mundo diferente. Pelo caminho, Amara encontra muitos outros sobreviventes, cada um com a sua própria história para contar, e pondera a existência conturbada dos seus próprios pais no mundo opressivo da Itália de Mussolini. Mas será que Emanuele conseguiu sobreviver à guerra ou, como tantos outros judeus de Viena, morreu em Auschwitz ou num gueto na Polónia?”
Casa das Letras, 2010