“A Noite de todas as Almas” é uma versão um pouco negra de uma história de encantar, igualmente envolvente e avassaladora, talvez até mais emocionante.
São incontáveis os títulos publicados recentemente sobre vampiros: no geral são histórias relativamente simples e objectivas orientadas para um público jovem. É obviamente um tema tentador para quem gosta de histórias longas, ou não vivessem os vampiros durante séculos. A verdade é que poucos ou nenhuns livros tenho lido sobre esta temática, se calhar porque todos me soam a umas historietas descartáveis, a partir das quais se fazem filmes ainda mais descartáveis, com actores de quem já ninguém se lembra.
Mas durante a leitura de “A Noite de Todas as Almas” experimentei um prazer que poucos livros proporcionam: senti que se entranhou em mim, que acompanhava os meus pensamentos mesmo nas pausas da leitura. Se por um lado foi como voltar às histórias da infância, cheias de magia e outros impossíveis que só a leitura e a imaginação podem tornar possíveis, por outro lado é um livro para adultos, com personagens cativantes que vivem na nossa realidade, trabalham e levam as suas profissões a sério. Senti que tudo era muito credível, deixei-me convencer com muita facilidade da existência de tais criaturas e da sua co-habitação connosco, humanos.
Este fantástico conto de fadas pode ser chamado de “conto de bruxas”; temos o príncipe no cavalo branco que vem salvar a princesa? Lá ter temos, mas um bocadinho diferente. Temos um vampiro com 1500 anos que se apaixona por uma bruxa, tudo isto nos tempos actuais. As mulheres já não ficam à espera do cavaleiro branco e as bruxas (eu não acredito mas que as há, há) são mulheres independentes dos homens, com poderes oriundos das mais misteriosas leis da natureza. Resumindo temos Diana, uma bruxa independente e uma profissional de sucesso, que se apaixona por Mathew, um Vampiro de 1500 anos, poderoso e experiente, habituado a ser líder.
Magia, Ciência e História estão sempre lado a lado neste livro. Diana é historiadora e o seu caminho cruza-se com o de Mathew numa bibliteca em Oxford, quando esta “acorda” um manuscrito medieval. Diana sabe que é bruxa mas sempre renegou ao seu dom. Nesse dia a sua vida muda e terá de aprender a lidar com toda a espécie de criaturas que sempre quis manter afastadas. Será que se pode escapar ao destino? Ou será que Diana sempre seguiu o percurso traçado, mesmo quando pensava que se afastava da sua natureza?
Foi difícil não me deixar fascinar por tais criaturas das trevas, amantes dos livros e do saber, possuidoras de espantosas bibliotecas. Uma princesa que é uma bruxa fascinada por um príncipe de 1500 anos, detentor de um nível de conhecimentos fruto de séculos de estudos e de experiência de “vida”. Mathew é, como em todas as descrições feitas até hoje de vampiros, um sedutor. Um homem inteligente e sedento de um saber, que as pesquisas e os estudos desenvolvidos ao longo de séculos não acalmaram. Para uma historiadora é um sonho. Versão intelectual da Cinderela ou Bela Adormecida? Claro, para mulheres exigentes que vêm para além do príncipe encantado, mas que talvez ainda sonhem com o “viveram felizes para sempre…”.
Difícil foi parar de ler, doloroso chegar à página final e querer mais. A autora já está a braços com o livro seguinte, até lá resta esperar suspirando de vez em quando pelo amor de Diana e Mathew…
Farei no entanto alguma pesquisa sobre Deborah Harkness pois fiquei (também) encantada com as suas (de Mathew) descrições de vinhos. Parece que este é um dos seus grandes interesses. Eu acho que, a julgar pelas suas espantosas descrições dos diferentes néctares presentes na história, se trata de uma grande paixão.
Resta-me referir a espantosa capa, com uns reflexos “mágicos”, muito bem conseguida e espantosamente adequada ao conteúdo.
Apenas me desiludi com o título da tradução portuguesa. “A Noite de Todas as Almas” fica muito aquém do original “A Discovery of Witches”, quanto a mim perfeito para o que não é mais do que a descoberta de Diana: o seu poder e aceitação do seu dom.
Recomendo. Vai fascinar os apreciadores de histórias de encantar adormecidos. Não o somos todos?
“- A que cheiro eu? – perguntei, brincando como pé do meu copo de vinho.
Por uns momentos pareceu-me que ele não ía responder. O silêncio estendeu-se até me olhar com uma expressão anelante. Deixou tombar as pálpebras e inspirou profundamente.
-Cheira a seiva de salgueiro. E a camomila esmagada sob os pés. – Cheirou de novo e esboçou um pequeno sorriso triste. – Tem também alguns vestígios de madressilva e folha de carvalho tombadas – acrescentou em voz baixa, expirando – em conjunto com rebentos de avelã e os primeiros narcisos primaveris. E coisas antigas: marroio, incenso, pé-de-leão. Aromas que pensava já ter esquecido.
Abriu os olhos sem pressas e eu olhei para as suas cinzentas profundidades, receando respirar e quebrar o feitiço que as palavras dele haviam lançado.
-E eu? – devolveu ele a pergunta, sem desviar os olhos dos meus.
- Canela. – A minha voz era hesitante. – E cravinho. Por vezes parece-me que cheira a cravos, não do tipo que se compra na florista, mas os antigos, que crescem nos jardins das casas rurais inglesas.
- Cravos silvestres. – disse Mathew, os olhos enrugando-se de satisfação nos cantos. – Nada mau para uma bruxa.” (p. 183)
Sinopse
“Num final de tarde de Setembro, quando a famosa historiadora de Yale, Diana Bishop, abre casualmente um misterioso manuscrito medieval alquímico há muito desaparecido, o submundo mágico de Oxford desperta. Vampiros, bruxas e demónios farão tudo para possuir o manuscrito que se crê conter poderes desconhecidos e pistas misteriosas sobre o passado e o futuro dos humanos e do mundo fantástico. Diana vê a sua pacata vida de investigadora invadida por um passado que sempre tentou esquecer: ela é a última descendente da família Bishop, uma longa e distinta linhagem de bruxas de Salem, marcada pela morte misteriosa dos pais quando era criança. E do meio do turbilhão de criaturas mágicas despertadas pela redescoberta do manuscrito surge Matthew Clairmont, um vampiro geneticista de 1500 anos de idade, apaixonado por Darwin. Juntos vão tentar desvendar os segredos do manuscrito e impedir que caia em mãos erradas. Mas a paixão que cresce entre ambos ameaça o frágil pacto de paz que existe há séculos entre humanos e criaturas fantásticas... e o mundo de Diana nunca mais voltará a ser o mesmo...”
Casa das Letras, 2011