Por vezes penso na quantidade de livros excelentes que, por alguma razão não obtiveram qualquer sucesso junto do público. Até há bem pouco tempo nunca tinha ouvido falar de “Chamava-se Sara”, foi durante uma agradável conversa que me foi sugerido e, assim que soube de que se tratava, não descansei enquanto não o encontrei e li.
Pelo que me apercebo trata-se de um enorme sucesso internacional que em Portugal passou ao lado do público; talvez publicitado de forma insuficiente, não sei, mas penso que dada a polémica do tema este livro não necessita de uma excessiva campanha publicitária para chegar aos leitores. Quanto a mim atingiu-me como uma flecha, li-o de forma compulsiva e estou rendida.
A autora conta esta história em dois tempos, isto é, vai intercalando os capítulos entre os anos de 1942 e 2002. Julia Jarmond é jornalista, apesar de ser americana vive em Paris há alguns anos onde casou e tem uma filha; está a trabalhar numa peça sobre um acontecimento de que os franceses não se sentem propriamente orgulhosos: em Julho de 1942 a polícia francesa levou à força milhares de judeus para um edifício desportivo, o Vélodrome d’Hiver, onde os deixou, durante dias e sem condições, a aguardar serem transportados para os campos de extermínio. Centenas de famílias foram forçadas a deixar os seus lares em Paris para serem tratadas como lixo e transportadas como gado a caminho da morte. A particularidade desta operação reside no enorme número de crianças envolvidas, e em como as autoridades poderiam justificar levar tantos menores para os campos de trabalho, obviamente na época não eram divulgados como campos de morte. Mais um episódio relacionado com o Holocausto do qual o mundo inteiro se deve envergonhar ter permitido.
Em Julho de 1926 conhecemos uma menina e a sua família. Durante a maior parte do livro é para o leitor uma menina sem nome, a narradora presencial deste episódio. Quando a polícia bate à porta desta família judia e os leva para o Vélodrome d’Hiver, nem sonha que a menina escondeu o irmão de 4 anos num armário secreto onde costumavam brincar. A menina, convencida que voltaria em breve, dado que era a polícia francesa que os levava e não os alemães, fechou o irmão à chave no armário e prometeu regressar para o libertar. Os acontecimentos sucedem-se e a menina apercebe-se que não a vão deixar voltar; de forma criminosa é separada dos pais e é enviada para um campo, ainda em França, com todas as crianças separadas das famílias. A autora descreve de forma perturbadora esta realidade, este abandono, maus tratos e consequente morte de muitos meninos e meninas inocentes.
No ano de 2002 uma série de coincidências fazem Julia envolver-se nesta história. Prestes a mudar para uma casa recentemente deixada pela avó do marido que foi viver para um lar, apercebe-se que se trata da casa onde viveu a família da menina; a mesma casa que esta família judia foi obrigada a abandonar. Os avós do marido de Julia, como tantos outros parisienses, ocuparam as casas vazias de forma bastante despreocupada, tendo em conta as condições em que os seus habitantes tiveram de as deixar. Tenha sido por desconhecimento ou negligência, a indiferença vivida na época choca-me bastante.
Julia envolve-se de forma muito intensa e decide saber o que aconteceu à menina. Vários são os motivos que a levam nesta pesquisa, o seu espírito curioso de jornalista é um deles, mas o seu inconformismo e revolta têm o peso preponderante. Além disso a sua vida pessoal e o seu casamento desgastado precipitam um envolvimento e uma sede de descoberta do percurso de vida desta menina chamada Sara.
Porque mesmo quem quer desaparecer vai deixando rasto, Julia investiga, viaja, procura e faz desta pesquisa a sua bandeira. O leitor acompanha, sofre, interioriza e medita sobre tantas injustiças e sofrimento. Vivi o sofrimento de Sara, que nunca esqueceu o irmão, e fez tudo para o salvar. Até saber o desfecho senti pânico e terror, depois disso uma imensa desolação por tudo, pela vida de Sara cujo percurso não foi fácil, uma criança que aos 10 anos revela uma maturidade invulgar.
Era capaz de falar e escrever sobre este livro durante horas. Vou respeitar o poder desta história e deixar os meus comentários por aqui. É um livro que fala por si e deve ser lido por muitos leitores. Recomendo sem qualquer reserva.
Obrigada Tânia por esta excelente sugestão que marcou o meu fim-de-semana e vai certamente ficar comigo durante muito tempo.
Sinopse
“Julia Jarmond, uma jornalista americana casada com um arquitecto francês, investiga uma página negra da história francesa recente: a rusga através da qual a Polícia Francesa, na madrugada do dia 16 de Julho de 1942, levou mais de 8 000 judeus franceses para o recinto desportivo do Vélodrome d’Hiver, para que aí ficassem até serem deportados para os campos de concentração.
Descobrindo, horrorizada, o calvário de todas aquelas pessoas que, durante dias, sem água nem alimentos, ficaram a aguardar a deportação, Julia interessa-se, em particular, pelo destino de Sara, uma menina entre as mais de 4 000 crianças que ali estiveram. Sara, acreditando que estava a proteger Michel, o seu irmão mais novo, fechara-o à chave num armário, prometendo-lhe que iria buscá-lo depois.
E depois não conseguiu.
Em Paris, em 2002, Julia, enquanto percorre o passado de Sara, a rusga, a deportação, acaba por ter de reavaliar o seu próprio lugar naquele país, naquele casamento e naquela vida. “
Dom Quixote, 2007