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planetamarcia

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Janeiro 03, 2023

Deus Pátria Família, de Hugo Gonçalves

Deus Pátria Família

 

Salazar foi assassinado em 1940.
Este livro é mais do que um exercício a partir desse pressuposto. É a narrativa consistente do caminho alternativo da nossa história (e da história do mundo).
Pensemos: o que teria sido diferente após 1940?
A posição de Portugal face ao conflito mundial manter-se-ia? Geograficamente continuaria a ser um “porto seguro” para refugiados? Que posição assumiria o nosso governo “alternativo?”
O que seria do “orgulhosamente sós?”
Chega para vos convencer que têm de ler este livro?
Como extra têm ainda um caso policial: mulheres aparecem mortas todos os meses.
Luís Paixão Leal, possivelmente dos personagens de que mais gostei até hoje, está no centro das investigações (mesmo a elas interditado) e tem, ele próprio, todo um passado para descobrir. É casado com uma judia, o que se revela um enorme risco para a família, mediante a evolução dos acontecimentos.
Uma conspiração ficcionada desenvolvida de forma brilhante e verosímil. A páginas tantas vi-me obrigada a confirmar se certas personagens existiram e se determinados acontecimentos ocorreram.
Um livro excelente que precisa de ser lido. Tem tudo: Deus, pátria, família.

Sinopse
«Às vezes, fazer a coisa certa obriga-nos a sentir a coisa errada.»
Lisboa, 1940
Uma mulher é encontrada morta no santuário do Cabo Espichel, envolta num manto branco, com um rosário entre os dedos. Os peregrinos confundem-na com uma aparição de Nossa Senhora. Os detetives encarregados do caso não vão em delírios, mas também não imaginam
que aquele é apenas o primeiro homicídio.
Vivem-se tempos estranhos: os tanques alemães avançam Europa fora e a bandeira nazi é içada na torre Eiffel. A Lisboa chegam milhares de estrangeiros e refugiados judeus, que escolhem a capital portuguesa como abrigo temporário ou porta de saída para uma vida sem medo.
As vítimas vão-se sucedendo: todos os meses, aparece mais uma mulher morta, numa sucessão de crimes de matizes religiosos. A Polícia de Investigação Criminal entrega o caso a Luís Paixão Leal, ex-pugilista de memória prodigiosa, com um olho de vidro e um passado misterioso em Nova Iorque. O detetive, que vê na justiça uma missão de vida, empenha-se em descobrir o culpado.
Até que, numa manhã de domingo, tudo muda: um golpe violento afasta Salazar do poder e sacode o xadrez político do país. Portugal abandona a neutralidade na guerra e alinha-se com as forças do Eixo. Nas ruas da capital, começa o cerco aos refugiados judeus e ecoam as tenebrosas memórias das perseguições da Inquisição.
Com a reviravolta política, Paixão Leal vê-se no centro de uma conspiração ao mais alto nível.
O detetive, que vive com uma judia alemã e os seus dois filhos, sente a ameaça a bater-lhe à porta. Num mundo à beira do colapso, terá um preço a pagar caso insista em desvendar a verdade.
Dos loucos anos 1920 nos Estados Unidos à convulsa década de 1940 em Portugal, chega-nos uma versão alternativa do nosso passado, com ecos no presente, porque basta uma única reviravolta para mudar o rumo de um país e assombrar milhares de vidas. Entrelaçando um mistério policial com uma saga familiar, Deus Pátria Família é um romance magnético do autor finalista dos Prémios PEN Clube e Fernando Namora.

Companhia das Letras, 2021

Publicado originalmente no Lux24

Janeiro 01, 2020

Passagem do ano, Carlos Drummond de Andrade

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Dezembro 29, 2019

"Açúcar", um Conto de Natal

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«Não há açúcar, vou sair para comprar!» — foi a última vez que se ouviu a voz de Isabel em casa. Noite de Natal. Ano 2008.

Isaura parada no corredor com os olhos na porta da entrada, as mãos desenhadas com farinha na frente do avental cinzento. O aroma a fritos escapa da cozinha, enchendo a casa de Natal.

O estalido da fechadura ainda nos seus ouvidos, onze anos depois.

 

As duas irmãs sempre viveram juntas. A casa é pequena, apenas um quarto, apenas uma cama, o regresso ao útero todas as noites, quem sabe ao óvulo que as concebeu iguais.

Isabel e Isaura, gémeas verdadeiras desde os caracóis negros até aos joanetes nos pés direitos. Dois pés estragados, mais valia ser nos dois pés do mesmo corpo, pensamentos de mãe durante o banho das meninas, na infância distante. Dois corpinhos idênticos ensaboados com amor. Dois pezitos com os dedos tortos fora da banheira cor-de-rosa.

Não há maçã que, cortada ao meio, se mantenha sã. Tal como a fruta separada em duas metades, Isaura sobreviveu com dificuldade apartada do pedaço que a completa. Mais de uma década a ser meia pessoa atrai toda a espécie de maleitas, desde febres persistentes a insónias, tosses eternas e reumatismo. Para as combater faz defumação aos domingos: um pote com ervas a arder nas mãos enluvadas, e a ladainha a marcar o ritmo da caminhada repetitiva, cozinha-sala-quarto-casa-de-banho-cozinha, sempre, até o fumo se extinguir.

Todos os Natais a mesma esperança no regresso. O mesmo avental cinzento por cima do vestido novo, comprado para a ocasião. O açucareiro pousado na bancada da cozinha, aguardando, como ela, que tudo volte ao que era antes. Na sala, sentada muito direita à mesa posta, bate o pé do joanete ao compasso das melodias natalícias que se obriga a ouvir ininterruptamente. Rotinas que foi criando e resiste em largar. A cada ano a expectativa mais elevada no regresso de Isabel fazem-na adicionar novos hábitos ao rol, como a confecção de todas as receitas sem açúcar, um simbolismo da sua incompletude e, ao mesmo tempo, da fé no regresso da irmã a tempo de adoçar os bolos. A cada meia-noite em que tudo permanece igual, atira com as iguarias para o lixo e o açucareiro regressa ao seu lugar no armário por mais um ano. Ela enfia-se na cama. Chora em posição fetal, o polegar na boca, os olhos fechados com muita força, como se isso pudesse fazê-la recuar no tempo e impedir o desaparecimento da irmã.

Isaura não tem forças para sair da cama. É véspera de Natal outra vez: o marco anual da esperança e da desilusão. Enrola-se no seu próprio corpo sob o edredon.

É uma ave com a cabeça debaixo da asa.

Tem um buraco no peito feito de melancolia.

 

Já é noite quando sai da cama. Decidira passar o Natal a dormir, está cansada de esperar por Isabel, todos os anos se dedica com amor aos preparativos natalícios na expectativa do seu regresso. Ajusta a fita do roupão à cintura e mete os pés dentro dos chinelos. Lá fora, uma chuva silenciosa desce pelas janelas em rios, distorcendo as luzes da cidade.

Percorre a despensa com o olhar e abre alguns frascos apenas para sentir o aroma do conteúdo. Os de melhor qualidade libertam odores mais intensos, de tal modo que o pequeno espaço é, por instantes, Índia. Coloca o avental cinzento por cima do roupão, é o primeiro ano que prescinde da indumentária cuidada.

 Pousa os ingredientes na bancada, unta a forma de chaminé, e começa a preparar um bolo sem açúcar. O açucareiro vazio está guardado no armário de sempre, Isaura abre a porta de vidro e fita-o como se o recipiente pudesse ter utilidade além de proteger o que se mete lá dentro. Nisto, o açucareiro ganha voz e faz perguntas sobre a mesa vazia, assim como exige saber porque é que este ano não há enfeites nem música. E «onde está o vestido novo?»

Ela, atónita, sussurra «já não vale a pena».

Fecha a porta com força, que se desfaz em pedaços, vidros pelo chão. Leva as mãos no rosto, olha em redor como se pudesse estar alguém a assistir. «Quão louca tenho de estar para falar com objectos?», reflecte.

Arruma o avental e procura os comprimidos para dormir na gaveta dos remédios. Toma dois com um longo gole de água e mete-se na cama de roupão vestido. Cede ao peso das pálpebras e deixa que uma onda de vazio lhe apague os pensamentos. Ressona.

Onze anos depois, o estalido na fechadura. Isabel em casa, segurando a embalagem de açúcar. Isaura dorme, mas o instinto leva-a a aninhar-se na irmã assim que esta se deita na cama. Regresso ao útero.

«Comprei açúcar amarelo, como tu gostas.» — segreda Isabel.

Voltou a ser Natal e Isaura não deu por isso.

 

Este conto foi escrito por mim, para o catálogo de Natal (2019) da Editora Almedina, «Ler é o melhor presente»

Dezembro 22, 2019

O que leio: O Protesto do Lobo Mau, de Maria Leitão (texto) e Pedro Velho (ilustração)

A imagem pode conter: texto

O Lobo Mau apresenta uma reclamação porque está dentro de uma história que não acontece como é suposto. Curiosos? Pois devem ficar. Eu adorei este livro, não são muitos os livros infantis tão fora da caixa, e aqui há surpresas a cada virar de página.

As ilustrações são deliciosas.

É o vencedor da Prémio de Literatura Infantil do Pingo Doce deste ano, e é um excelente presente de Natal de última hora. Se já compraram todos os presentes, vão buscá-lo na mesma.

Dezembro 15, 2019

Promoções de Natal que nos dão cabo da cabeça

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Eu tinha ideia, cá na minha inocência, que Dezembro era aquele mês em que tudo fica mais caro. Quem não antecipa as compras de Natal sujeita-se a gastar mais.

Este ano (eu não me lembro de tantas promoções em anos anteriores) há promoções a toda a hora. E não só de livros, apesar de a minha atenção ser quase a 100% para a leitura.

A Tinta da China, por exemplo, tem todos os dias (até dia 21/12) um livro com 50% de desconto. Chamam-lhe calendário da advenda de natal, mas eu diria que é um calendário da desgraça. Lá estou eu todos os dias à espera de saber qual o livro contemplado... Podem acompanhar este calendário na página do facebook ou no site.

Na semana passada mandei vir "Alguns Humanos", de Gustavo Pacheco, livro que já há algum tempo tinha a minha atenção. É um livro de contos e, no dia que chegou, almocei o primeiro conto. Digo-vos que me caiu mesmo bem...

Mas há mais promoções que nos dão cabo da cabeça (apesar de adorarmos), mas seria demais para um só post...

Dezembro 09, 2019

Ler é o melhor presente

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Vocês não adoram catálogos de livros? Folhear calmamente o papel acetinado, juntar títulos à interminável lista, deixar sinais nos livros preferidos e "esquecer" o catálogo em lugares estratégicos para "ajudar" alguém a escolher um presente...

Céus, quanta utilidade pode ter um catálogo!

O da Almedina é tudo isso e Contos de Natal. Eu participo com "Açúcar", a história das gémeas Isabel e Isaura. Descubram-nas. Assim como os Contos de Maria Inês Almeida, Marlene Ferraz e Sofia Fraga.

Ler é mesmo um presente que a Almedina oferece, o catálogo é de distribuição gratuita. Encontrem-no nas lojas. Ou aqui.

Boas leituras!

(fotografia do facebook das Livrarias Almedina)