Julho 08, 2012
Tânia Ganho. Mais perto de nós, leitores.
Já desde algum tempo que tinha o desejo de colocar algumas questões a Tânia Ganho, não só em relação à sua escrita, mas também às suas traduções, uma atividade que nem todos relacionam com a autora.
Agradeço à Tânia, que está sempre disponível para conversar e debater os mais diversos temas, por esta colaboração.
O texto seguinte é isso mesmo, nasceu de uma conversa informal, que transformei em perguntas e a Tânia respondeu. Não só sobre os seus livros ou traduções, mas debatendo um pouco os livros e leitores em Portugal.
Porque as conversas são como as cerejas, e ambas adoramos livros, aqui fica o resultado.
1.Traduções /Influências
1a) Sente que há reconhecimento e interesse por parte dos leitores em relação à tradução? Há necessidade de saberem se a tradução e revisão foram cuidadas?
TG - Sinto que os leitores portugueses estão cada vez mais atentos à qualidade das traduções, o que é louvável. Penso que as pessoas andam mais exigentes em relação a tudo, incluindo as traduções, e já não aceitam tão facilmente um livro mal traduzido. Continua, no entanto, a ser um trabalho de bastidores, que se faz na “sombra”, sem reconhecimento público e sem uma recompensa financeira adequada.
1b) Permite que o que é lido e analisado como trabalho influencie a sua escrita? Se essa influência acontece gosta de a ver refletida ou, ao contrário, é uma desilusão?
TG - Tento separar a tradução da escrita, para não haver “contágio”, plágio, a nível estilístico. Quando escrevo, faço questão de manter a minha “voz” intacta, e quando traduzo, faço de tudo para respeitar a “voz” do autor. Prefiro falar de inspiração e não de influência. Há autores que me inspiram muitíssimo, que alargam os meus horizontes e enriquecem o meu universo pessoal, o que se reflecte forçosamente na minha escrita. Aprendo muito com os livros que traduzo, sobretudo questões técnicas: ritmo, construção de personagens, estrutura narrativa.
1c) Só traduz o que gosta?
TG - Neste momento, sim, só traduzo o que me dá prazer, mas demorei quase dez anos a permitir-me este luxo.
1d) Do que lê por prazer quais são os autores favoritos? De que forma sente que se refletem na sua forma de escrever? Se é que considera que isso acontece.
TG - São tantos… Ian McEwan, Anne Tyler, Claudie Gallay, Nicholas Shakespeare, Doris Lessing, Margaret Atwood, Olivier Adam, Jenny Diski, Maggie O’Farrell, Henry Miller, Chimamanda Adichie, Eliette Abecassis, David Lodge… Como disse, estes autores reflectem-se na minha escrita no sentido em que me enriquecem enquanto pessoa e me alargam os horizontes.
2.Capas/Marketing/Necessidades de Mercado
2a) O que acha da importância da capa de um livro e das campanhas promocionais no mercado atual?
TG - Triste… Costumávamos dizer que não se deve julgar um livro pela capa, que não se deve rotular as pessoas pela aparência, mas é o que fazemos cada vez mais. Os livros transformaram-se em puros objectos de marketing, muitas vezes em detrimento do conteúdo. Da mesma maneira que os autores se tornaram máquinas de marketing e por vezes se sobrepõem à obra, ao texto em si. É pena. Os leitores deviam ter igual acesso a todos os livros – bons livros – e isso não acontece, porque as capas, as campanhas, a publicidade, a propaganda, os lobbies monopolizam as atenções. Dito isto, é óbvio que eu própria aprecio uma bela capa, como as dos meus livros A Lucidez do Amor e A Mulher-Casa, mas são capas extremamente coerentes com o texto em si, não são uma mera estratégia de marketing. A imagem da capa da Mulher-Casa é da autoria de Madame Yevonde, que foi uma pioneira da fotografia a cores e uma grande defensora dos direitos das mulheres, portanto está em perfeita sintonia com o conteúdo do livro.
2b) Concorda com a ideia de que os livros são mais descartáveis agora, que já não há “os livros de uma vida”, inesquecíveis, relidos e continuamente citados? Ao invés disso temos grupos de leitores sedentos por desafios literários de X livros por ano/mês; temos centenas de blogues literários em que todos lêm e escrevem sobre os mesmos títulos, fazendo com que a vida de um livro se torne muito curta.
TG - O livro tornou-se como tudo o resto na sociedade actual: um objecto de consumo fácil, rápido e descartável. Mais um item coleccionável, como os amigos, os amantes, as viagens… tudo é publicamente contabilizado e apregoado. Mas acredito que ainda há livros que marcam, que perduram, que ficam para sempre dentro de nós.
3. Rótulos
3a) O que acha da divisão que se continua a verificar em relação ao público-alvo dos livros? Eu pessoalmente detesto as separações “livros para mulheres”, “livros para homens”, “literatura young adult”, etc.
TG - Eu detesto rótulos. Os rótulos assentam em preconceitos e perpetuam-nos. A Literatura deve abrir portas e não fechá-las.
3b) Penso que a chamada “Literatura feminina” tem uma conotação negativa que a associa ao romance de cordel, a livros inferiores. O que acha que pode ser feito para que os livros escritos por mulheres não sejam imediatamente considerados ocos por os encaixarem neste rótulo? E que as mulheres que querem e sabem escrever não tenham de ter um percurso mais árduo que os homens para chegar ao topo?
TG - É muito simples: acabar com rótulos e binómios (feminino/masculino). É tão preconceituoso rotular um livro de “romance de cordel” ou de “literatura com minúscula”, só porque foi escrito por uma mulher e “fala” sobre mulheres! Reduzir todas as mulheres a “mulherzinhas” e considerar todo o romance escrito por uma mulher como um “silly novel” (para usar a expressão da George Eliot) é sintomático de uma pequenez de espírito que me desconcerta nos tempos que correm. A solução é darmos mais destaque às mulheres na praça pública, ouvi-las, lê-las, respeitá-las. E promover uma crítica literária séria, aberta e, claro, desempoeirada.
3c) Poderá atribuir-se alguma responsabilidade às Editoras que criam chancelas só para romances de cordel “disfarçados” com capas bonitas e apelativas? Ou a responsabilidade é dos leitores que, apesar de serem cada vez mais, têm cada vez menos espírito crítico e são uma espécie de “papa-novidades”?
TG - Não acho que os leitores tenham cada vez menos espírito crítico… Penso que muitas vezes se tornam “papa-novidades”, porque as livrarias só lhes oferecem novidades. É quase impossível encontrar um livro nos escaparates que tenha saído há mais de dois ou três meses. As livrarias e os editores é que andam a fomentar um espírito de consumo desenfreado, em vez de apostarem em menos títulos, mas bons. Verdadeiramente bons. Ironicamente, são os principais interessados em manter os livros vivos – porque ganham dinheiro com eles – que os andam a matar.
4. A Mulher-Casa
4a) Qual a sua opinião sobre o novo acordo ortográfico? No livro “A Mulher-Casa” é mencionado que “Por vontade expressa do autor, o presente romance não segue as regras do Acordo Ortográfico”. Qual a razão desta opção?
TG - Não concordo com algumas das alterações introduzidas pelo acordo e, sinceramente, estou tão habituada a escrever à “moda antiga” que, se começo a pensar nas modificações introduzidas pelo acordo, a escrita torna-se um processo mecânico e perde a espontaneidade toda.
4b) Eu acho que este é um livro que não se visualiza como um filme mas mais como um álbum de fotos. Tem um ritmo muito próprio. Tem consciência disto? É intencional?
TG - Construí o livro como uma série de quadros. Incuti-lhe um ritmo propositadamente lento na primeira metade, muito à século XIX (daí o subtítulo “Cenas da vida íntima em Paris”), e a partir do momento em que o amante entra em cena, acelerei o passo para reflectir o estado de paixão e tensão sexual. O ritmo e a estrutura narrativa dos meus romances são sempre intencionais, fruto de muitos meses de reflexão.
4c) Tanto no livro “A Lucidez do Amor” como em “A Mulher-Casa” estamos perante duas mulheres cujos maridos têm profissões exigentes que os obrigam a muitas ausências. No entanto Paula e Mara encaram a realidade de forma muito diferente. De onde vem a segurança de Paula e onde se perde a lucidez de Mara? Pode falar-se em nostalgia pela solidão feminina? Relaciona-se com alguma experiência pessoal?
TG -Paula não é uma mulher particularmente ambiciosa em termos profissionais e tem um marido muito carinhoso e presente, apesar de estar longe de casa durante muito tempo. Paula e Michael vivem no fio da navalha, têm noção de que a vida pode mudar a qualquer instante – porque Michael é piloto e lida com o perigo todos os dias -, portanto acarinham cada momento que passam juntos, o que dá uma enorme serenidade a Paula. Mara, pelo contrário, vê-se relegada para segundo plano na vida do marido, Thomas afasta-se dela, torna-se frio e arrogante. Se juntarmos a essa carência afectiva uma enorme frustração profissional, o resultado só podia ser uma mulher insegura e demasiado emotiva.
O sentimento de nostalgia perpassa todo o livro, sim… Mara tem saudades de si própria, da mulher que era antes de se ver reduzida ao estatuto de mãe, antes de se tornar um corpo exausto, privado de sono, destituído de desejo sexual. Tem saudades de viver sem horários, de criar os seus chapéus quando lhe apetecia, em vez de se reger pelos biberões e as sestas do filho de colo; saudades do estado de paixão, daqueles beijos adolescentes, como ela diz, que duravam horas e o mundo deixava de existir ao contacto de outro corpo. Mara é uma mulher em busca da sua própria identidade e é através da sexualidade (através do amante, que lhe devolve o corpo e o prazer que ela sentia que tinha perdido) que se vai redescobrir.
4d) Pessoalmente sente que este novo livro representa uma evolução em relação ao anterior? Em que medida?
TG - Espero que seja um passo em frente, a todos os níveis, porque isso significa que estou a evoluir, que não estagnei. Desejo sempre que o próximo livro seja melhor do que o precedente. Encaro a escrita como a vida: em perpétua mudança e crescimento. Espero ter um longo caminho pela frente e talvez aos setenta anos já possa dizer, sem entrar em pânico, que cheguei aonde queria chegar.
4e) De que forma é que, durante a escrita e construção deste romance, a Mara entrou na vida de Tânia e a Tânia na vida de Mara?
TG - A Mara viveu comigo durante vários anos e, enquanto construía a personagem, e mais tarde, enquanto escrevia o livro, vi o mundo através dos olhos dela: exposições, filmes, Paris, os noticiários… tudo me suscitava a pergunta: “Como é que a Mara reagiria a isto?” Ou seja, entrei por completo na cabeça da minha personagem e ela invadiu o meu quotidiano.
4f) De que forma gostava que o público visse este romance?
TG - Como a história de uma mulher – um ser humano – em busca de si própria, do seu próprio prazer e identidade, para lá dos rótulos de “esposa”, “mãe”, “costureira”. E também como uma história intemporal de paixão.
5. O próximo projeto já está em andamento? O que podemos saber acerca disso?
TG - Já está em andamento, sim. Em fase de pesquisa e construção da personagem principal, um homem de quarenta e poucos anos, ligado ao mar.