Iniciei esta leitura nas primeiras horas do dia, com a casa ainda mergulhada em silêncio. Foram as condições adequadas para um livro com o qual me identifiquei por dois motivos: fala do deserto, que não conheço mas que me fascina, e do silêncio. Do silêncio como uma coisa boa, como uma necessidade, da forma como duas pessoas que o entendem e procuram se podem sentir confortáveis sem palavras ou ruídos.
Há medida que a luz do sol incidia na minha sala, e eu avançava nas páginas do livro, senti que me identificava com tantas coisas…com a paixão pelas viagens e pelo conhecimento, com o facto de que o que importa não é o chegar mas sim o caminho percorrido.
Este livro é mais do que uma história de amor entre um homem e uma mulher. É a descrição de uma partilha de momentos que tiveram o seu lugar no tempo, foram vividos sem pensar num futuro, para ficarem guardados nesse tempo, registados como uma fotografia na qual permanecemos sempre com a mesma cara e com a mesma idade.
Guardo comigo o sonho de ir ao deserto, observar uma imensidão de nada, de ninguém. Ficar em silêncio a registar mentalmente todas as coisas que um dia poderei vir a dizer ou escrever. Tal como nesta passagem que, apesar de curta, diz muito:
“Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer.”
Não são necessárias mais do que um par de horas para ler este livro, mas penso que tem várias passagens que podem ser apreciadas por muito mais tempo do que aquele que dura a sua leitura. Marcou-me de muitas formas esta leitura breve. Um livro importante não se mede pela sua dimensão, mas si pela dimensão do que deixa em nós. Senti que foi um prazer escrever este livro, apesar de algumas passagens de dor.
Aqui deixo algumas palavras que quero recordar por bastante tempo:
“Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos – e esse é assustador.” Pág.49
“Tu não respondeste nada. Os teus olhos azuis, ainda estremunhados, o teu cabelo espalhado ao vento em todas as direcções, a tua cara de sono, de menina pequena, respondiam por ti – e, caramba, como tu ficavas bonita assim, sem precisares de dizer o que quer que fosse! Apenas a olhar em frente, como te tinha visto fazer todos aquelas dias, no banco ao lado do meu no jipe. Tu falavas pouco e essa era uma das coisas que eu gostava em ti. Quando tudo era bonito de mais ou duro de mais, tu ficavas calada a olhar silenciosamente. Falámos sobre isso uma vez, e eu disse-te que a vida me tinha ensinado que fácil era o ruído, as conversas sem sentido, a banalidade das palavras ditas sem necessidade alguma. De nós os dois, tu eras, sem dúvida alguma, a mais calma, a mais feliz tranquilamente. A mais atente, a mais disponível para o vazio e o silêncio.” Pág.115
“Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Cláudia. (…) A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntaram o que há lá e eu respondo “nada”, eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. (…) Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, “leves”, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.” Pág.119
Recomendo este livro. Aos sonhadores. Aos viajantes. Aos apaixonados pela vida e pelo conhecimento. Aos descobridores. E até àqueles que não apreciam o autor, que são bastantes ao que consta, percam-se neste deserto.
Oficina do Livro, 2009