Maio 01, 2014
A Tia Julia e o Escrevedor - Mario Vargas Llosa - Opinião
Custa-me cada vez mais escrever sobre livros. Bons livros. Porque não há nada que eu possa fazer para os tornar melhores, nem tal ambição tenho o desplante de ter, e porque sinto que escreva o que escrever, será sempre insuficiente.
Mas, e porque estes joguitos de palavras que faço me dão um certo gozo, não resisto a pelo menos tentar descrever o prazer de ler um livro excepcional.
Já li alguns livros de Llosa. Este é diferente. Autobiográfico. Não sei, tem logo assim à partida uma espécie de seriedade cheia de verdades. Mete respeito pensar que se vai entrar na vida privada do senhor quando tinha dezoito anos, descobrir uma espécie de incesto por afinidade que aguça a curiosidade, mas ao mesmo tempo me fez recear ficar a salivar pelas personagens delirantes dos outros livros que li do autor.
Mas não. Pois que o delírio continua. A imaginação de Vargas Llosa é, sem dúvida, poderosa, mas as situações da sua vida e aqueles que o rodearam terão sido, a meu ver, um impulso decisivo para criações tão fantásticas. O meio terá influenciado o criador. Sorte ter a genialidade e movimentar-se num laboratório vivo, cheio de cobaias mesmo a pedir a imortalização. Num livro. Partindo do princípio que tudo no livro é verdade. A mim apetece pensar que sim.
E mais me apetecia ter lá estado. Para conhecer Pedro Camacho que, não sendo o meu grande favorito Dom Rigoberto, me encantou com a sua dedicação exaustiva à escrita, pela forma como sugou a sua imaginação até ao esgotamento, citando o próprio “Para a arte não há horário”.
Não interessa o que Camacho escreve mas como o faz. Pois que explicando a sua dedicação à causa qualquer aspirante a escritor o idolatrará de imediato, aprofundando a questão acerca do tema dos seus escritos, já não é assim tão fascinante. Por isso e para manter por mais um pouco esta ideia romântica do escritor lunático, vou adiar a explicação mais exacta (a verdadeira, pronto) para depois.
Camacho escreve como um actor. Muda de indumentária para entrar totalmente na personagem. Enfiado num cubículo com a Remington “emprestada” cria capítulos para a cada dia, a cada hora, surpreender e fascinar ainda mais os seguidores. Estes, mesmo depois, de ele dar provas óbvias de ter entrado nas suas próprias estórias ao ponto de enlouquecer, ainda o adoram mais. Ficam diariamente, à hora certa, ansiando ouvir a radionovela, os folhetins do grande Pedro Camacho. Um escritor para massas, um escritor de banalidades, que leva o seu trabalho tão a sério que representou uma grande inspiração para Llosa.
Fascinante e caricato, este é (mais) um livro de Vargas Llosa que me levou muito mais longe do que eu esperava ir. Ao compasso do seu amor pela Tia Julia, fui sendo surpreendida com capítulos com uma certa estrutura de conto, que me foram fazendo imaginar que, também ou, ouvia a radionovela.
“Começo a escrever com a primeira luz. Ao meio-dia o meu cérebro é uma tocha. Depois vai perdendo fogo e à tardinha paro porque só restam brasas. Mas não importa, pois nas tardes e nas noites é quando mais rende o actor. Tenho meu sistema bem distribuído.” (Pág. 47)
“Quando lhes perguntei porque é que os preferiam aos livros, protestaram: que palermice, como é que se podiam comparar, os livros eram a cultura, os folhetins simples extravagâncias para passar o tempo. Mas o certo é que viviam apegadas ao rádio e que nunca tinha visto nenhuma delas abrir um livro” (Pág.96)
“Cada vez se me tornava mais evidente que a única coisa que queria ser na vida era escritor e cada vez, também, me convencia mais que a única maneira de sê-lo era entregando-me à literatura de corpo e alma. Não queria de modo nenhum, ser um escritor a meias e aos bocadinhos, mas sim um de verdade, como quem? O mais próximo desse escritor a tempo inteiro, obcecado e apaixonado pela sua vocação, que conhecia, era o radionovelista boliviano: por isso me fascinava tanto.” (Pág. 198)
Sinopse
“A Tia Julia e o Escrevedor é um dos livros mais originais de Vargas Llosa. Conta a história de Varguitas, um jovem peruano com ambições literárias que se apaixona por uma tia com quase o dobro da sua idade. Em paralelo a esse romance proibido, na Lima dos anos cinquenta, Varguitas conhece Pedro Camacho, autor excêntrico de radionovelas cujos enredos mirabolantes fascinam os peruanos. As novelas vão muito bem, até ao dia em que Pedro Camacho, sobrecarregado, começa a confundir enredos e personagens. E, ao mesmo tempo, o romance entre Varguitas e a tia Julia é descoberto pela família. Ironia e romance em doses perfeitas, memórias autobiográficas e criação literária magistral fazem deste livro um clássico da literatura contemporânea.”
D. Quixote, 2011