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planetamarcia

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Março 04, 2017

A Avó e a Neve Russa - João Reis - Opinião

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Como não querer ler este livro? Um menino que nos fala (como um menino) da sua visão do mundo e dos planos para salvar a avó doente.

É um menino que, na verdade, já é um homenzinho. Que sabe tantas coisas, tantas, da História do mundo e das pessoas em seu redor. Sabe da solidão da doença e da certeza de que a avó, apesar da exposição aos ventos atómicos, não pode morrer. Nem que para isso, seja ele próprio a salvá-la.

Tinha alguns receios acerca desta leitura, nomeadamente que a verosimilhança (ou falta dela) atraiçoasse a ideia (brilhante) de colocar todas as palavras deste livro na boca de uma criança. Um trabalho de estofo, diria eu, manter o leitor crédulo no pequeno (de quem nunca sabemos o nome) que nos conta tantas coisas da história da sua própria família, e revela uma aprendizagem alargada e deliciosa de tantos acontecimentos mundiais.

O seu olhar sério sobre a escola, a vizinhança, tudo o que observa e o faz, não só pensar, mas colocar em causa ou interrogar-se sobre questões pertinentes que podem começar pela saúde debilitada da avó devido acidente nuclear de Chernobyl, mas que avançam sem controlo para reflexões sobre xenofobia (ou xenofilia num dos vários admiráveis equívocos), ou pelas mais variadas injustiças do mundo.

E sim, acreditei até à última página que este menino me falava, que os seus olhos me davam uma perspectiva infantil com a qual me deliciei tanto de felicidade como de tristeza, que quis ficar triste com a morte iminente da Babushka, mas que a crença do neto na cura me arrancava fé de onde eu não sabia que tinha. Uma fé que durou um livro. Pouco para alguns. Muito para mim. A escrita de João Reis tem a competência de fazer sonhar, infelizmente dentro de limites, mas sonhar. Tem o dom do sorriso, mesmo que misturado com a tristeza da racionalidade que não nos deixa, e que talvez por isso, permite uma beleza feita de tanta simplicidade.

Eu gostava que todos o lessem.

“Os avós paternos do Matt estiveram num acampamento de concentração dos Nazis do Senhor Hitler, e os seus pais eram ainda crianças pequeninas e ficaram escondidos em Varsóvia porque cabiam em todos os armários. A avó do Matt morreu num desses acampamentos de concentração do Senhor Hitler; comia pouco e ficou magra até morrer, e depois carbonizaram-na para que não ficasse a ocupar espaço e enviaram-na para as caldeiras, já que moravam muitas pessoas naqueles acampamentos e não havia o aquecimento que temos hoje em dia. O avô do Matt sobreviveu, porque fazia serviços no campo e falava alemão e algum francês, foi isso que o salvou. Deram-lhe comida suficiente para não comer de menos e ficar magro até morrer. Porém, ele acabou por se matar, ainda o Matt era uma criança; não aguentou a pressão da sociedade que cai sobre um sobrevivente e o esmaga, acordava a meio da noite em terrores vivos, a chorar.” Pág. 95/96;

“E as árvores envelhecem e mantêm-se de pé e aumentam o tronco, mas as pessoas encolhem e encolhem até desaparecerem pressionadas pela idade que têm em cima do corpo; porém, as árvores não se podem mexer e ficam presas à terra e não conseguem fugir, e nisso são parecidas com a Babushka, deitada na cama do hospital, tão pequena, pequenina, se não fosse pelos cabelos brancos quase seria um bebé da maternidade. Pobre Babushka: escapar aos ventos fulminantes para estar assim, arruinada numa cama, e só uma planta a pode ajudar, um cato.” Pág. 105;

Sinopse

“Babushka está doente. Esta russa idosa, emigrante no Canadá, sobreviveu ao acidente nuclear de Chernobyl. Esconde no peito a doença que a obriga a respirar a contratempo e lhe impõe uma tosse longa e larga e comprida e sem fim — um mal que a faz viver mergulhada nas memórias do seu passado luminoso, a neve pura da Rússia, recordação sob recordação.
Na fronteira com a realidade caminha o seu neto mais novo, de dez anos, um menino que não desiste de puxar o fio à meada e de tentar devolver a avó ao presente. Para ajudar Babushka, precisa de encontrar uma solução para os seus pulmões destruídos, sacos rasgados e quase vazios — mesmo que isso o obrigue a crescer de repente e partir em busca de uma planta milagrosa, o segredo que poderá salvar a família e completar a matriosca que só ele vê.
Narrado na primeira pessoa e escrito a partir da perspetiva de uma criança, A Avó e a Neve Russa é um livro feito da inocência e da coragem com que se veste o deslumbramento das infâncias. Romance simples e emotivo sobre a força da memória e da abnegação, relata a peregrinação de um neto através da esperança, do Canadá ao México, para encontrar a possibilidade de um final feliz.”

Elsinore, 2017

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