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planetamarcia

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Dezembro 29, 2013

Afirma Pereira - Antonio Tabucchi - Opinião

 

O pior das férias é ficar longe dos meus livros. Independentemente dos livros que leve, vai sempre apetecer-me ler algo diferente. Mania ou trauma não sei, mas que me dá cabo dos nervos isso sem dúvida.

Então, olhando para o saco de livros que transportei comigo, e pensando em como me apetece ler todos menos aqueles, “ataquei” biblioteca alheia e risquei da lista mais um daqueles que tem mesmo de ser lido.

“Afirma Pereira” é um livro envolvente que me foi conquistando. Pereira é uma personagem peculiar, que muda a cada página, no final o Dr. Pereira não é o mesmo do início.

Começamos por conhecer um homem que vive de rotinas, alheio ao que se passa em seu redor, mesmo desinteressado, completamente focado no seu trabalho no suplemento cultural de um jornal em Lisboa. Viúvo, vive sozinho, trabalha sozinho, come sozinho, movendo-se num plano só seu. Um dia, conhece o jovem Rossi, e vai gradualmente absorvendo a realidade da cidade e do país em que vive. O convívio com Rossi vai acordando Pereira até que ele se apercebe o que significa viver em ditadura, ter os passos controlados, o trabalho vigiado e censurado. O país é o mesmo, o emprego é o mesmo mas Pereira muda, e este despertar para uma realidade que já existe é construído de uma forma exemplar por Tabucchi.

Fiquei fascinada com a escrita simples mas tão completa, que me fez conhecer Pereira e sentir a forma como ele ia percebendo a situação ao seu redor. Como uma revelação lenta que o acorda cada dia mais um pouco.

Um livro fabuloso e uma escrita sedutora que me prendeu sem eu me dar conta, fui ficando enredada de uma forma tão boa que só parei na última página.

Sinopse

“Tendo por pano de fundo o salazarismo português, o fascismo italiano e a guerra civil espanhola, Afirma Pereira é a história atormentada da tomada de consciência de um velho jornalista solitário e infeliz. Num fatídico agosto de 1938, o mês crucial da sua vida, Pereira narra o que vai acontecendo e em que circunstâncias de um período trágico da sua existência e da Europa.”

Colecção Mil Folhas, Público

Dezembro 28, 2013

Revolução Paraíso - Paulo M. Morais - Opinião

 

Os comentários lidos e ideias partilhadas na Roda dos Livros não me tinham preparado para a excelência de “Revolução Paraíso”. As expectativas eram elevadas e antevi que o tema, bem explorado, poderia permitir uma leitura diferente sobre uma época falada mas raramente alvo de um escrutínio “mais à séria”. Talvez por se tratar de uma época recente, por haver pouco conhecimento e pouco interesse, ou talvez pouco interesse por haver pouco conhecimento.

A verdade é que quem desconhece a época “quente” e conturbada que medeia o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, ou a desconheça completamente e não tenha interesse em investigar (como eu fiz várias vezes, que sou interessada e curiosa mas já nasci em democracia), vai sentir que a História lhe passa ao lado, vai perder brilhantes requintes de ironia e de um humor de alto nível que Paulo M. Morais proporciona a quem se entrega a esta leitura.

Personagens fiéis à época, pelo que consigo imaginar pois as minhas recordações não chegam tão longe, que falam, agem e vivem uma constante revolução, tempos loucos de uma liberdade que se aproveitava sofregamente mesmo não sabendo, algumas vezes, o que fazer com ela. Uma banda sonora das músicas que todos conhecemos, a intervenção nas ruas e a vida de todos os dias com muitas cores. Por vezes um bocado louco, a antítese da opressão vivida até então que, muitas vezes, leva a extremos pouco recomendáveis. Retrato de um país sem rumo, num risco real de guerra civil, que se desenvolve dentro da habitual bandalheira que caracteriza o nosso povo e na qual, aliás, continuamos a viver.

Retrato não só de uma época mas dos portugueses passados e presentes, com tudo o que de bom e mau nos caracteriza. Difícil escolher uma personagem favorita, pelo menos das reais, traçadas e descritas com uma qualidade tão boa que até assusta, Paulo M. Morais até mete nervos de tão bem que escreve. Para atazanar ainda mais qualquer aspirante a escritor ainda se sai com aquelas fabulosas tiradas Queirosianas. Um trabalho exemplar que deve ser lido e reconhecido. Excelente.

Sinopse

“Alternando realidade e ficção, um romance que nos transporta aos agitados dias da pós-revolução: o retrato de um país que, entre o PREC e as eleições livres, procura um novo rumo.
Enquanto nas ruas se decide o futuro de um país, na tipografia de Adamantino Teopisto vive-se um misto de enredo queirosiano, suspense de um policial e ternura de uma novela: com sabotagens, amores proibidos e cabeças a prémio; tudo num ambiente de revolução apaixonado.
O rebuliço generalizado tem repercussões no alinhamento do jornal e no dia a dia das gentes de São Paulo e do Cais do Sodré.
A revolução é o tópico das conversas nas tascas, nas ruas, no prédio da Gazela Atlântica, contribuindo para o exacerbar das tensões latentes entre o patrão Adamantino e os funcionários. A vivacidade de uma estagiária, as manigâncias de um ex-PIDE foragido, os comentários de um taberneiro e as intromissões de um proxeneta e de uma prostituta, agravam ainda mais a desordem ameaçadora que paira no ar.
Nada foi igual na vida dos portugueses após a Revolução dos Cravos. Nada foi igual na vida da "família" Gazela Atlântica após o 25 de Abril.”

Porto Editora, 2013

Dezembro 25, 2013

Os Livros que Devoraram o Meu Pai - Afonso Cruz - Opinião

 

“A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo que gostamos. Contudo, o meu pai levava livros (livros e mais livros!) para a repartição de finanças e lia à escondidas sempre que podia. Não é uma atitude que se aconselhe mas era mais forte do que ele. (…) Uma tarde, uma tarde como tantas outras, o meu pai estava a ler um livro que mantinha debaixo dum impresso de IRS para que o chefe não reparasse que ele não estava a trabalhar. E foi nessa tarde que ele, de tão embrenhado, tão concentrado na leitura, entrou livro adentro.“ (Págs. 12,13,14).

Depois de começar a ler é impossível parar. Qualquer apaixonado por livros se identifica e sente atraído pelas descrições. Ler aumenta a criatividade e transforma-nos em realizadores de filmes na nossa cabeça, quem nunca falou com os personagens ou desejou mudar o rumo da história?

Eu nunca levei livros para ler às escondidas no emprego como Vivaldo Bonfim mas gostava. Gostava mesmo muito de, em certas alturas do meu dia, poder desaparecer para dentro de um livro e ficar rodeada pelas paisagens que imaginei, falar com heróis e até mesmo com assassinos. Estar em constante busca de muitas verdades e aventuras. Ter um sótão para ler e experimentar vidas falsas como se fossem verdade, estar sozinha mas não o sentir por estar sempre rodeada de ideias, não só ler mas verdadeiramente viver dentro de um livro.

“Os Livros que Devoraram o meu Pai” é fisicamente curto mas tem uma dimensão do tamanho da fé que depositamos nos livros. Para mim um livro gigante. Mais uma leitura que, terminada, me coloca mais perto da certeza que Afonso Cruz não consegue escrever livros maus.

Obrigada Elias Bonfim pelas viagens e pela determinação em encontrar respostas. Também quero procurar caminhos e, mesmo que não os encontre nos mesmos locais, ficou a vontade de descobrir “A Ilha do Dr. Moreau” e “Fahrenheit 451”, que sinto já terem a porta semiaberta.

“Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sentava no sótão entre tantos livros.” (Pág. 28).

“Atravessar a Rússia significa percorrer onze fusos horários. Quando numa ponta do país é de dia, a outra é de noite. A Rússia é como a alma humana. Se tem um lado luminoso, é porque a outra ponta está no escuro. Somos todos feitos desta estranha mistura de fusos horários.” (Pág. 86).

Sinopse

“Vivaldo Bonfim é um escriturário entediado que leva romances e novelas para a repartição de finanças onde está empregado. Um dia, enquanto finge trabalhar, perde-se na leitura e desaparece deste mundo. Esta é a sua verdadeira história — contada na primeira pessoa pelo filho, Elias Bonfim, que irá à procura do seu pai, percorrendo clássicos da literatura cheios de assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.”

Caminho, 2013

Dezembro 15, 2013

Jesus Cristo bebia cerveja - Afonso Cruz - Opinião

 

A cada novo livro que leio de Afonso Cruz mais difícil se torna opinar e escrever. Um autor com um universo único e completamente inovador, extremamente filosófico e reflexivo, os seus livros abrem sempre mais um pouco a nossa mente.

Fico cada vez mais com a sensação de inter-relação entre os seus livros, como um trabalho contínuo, um caminho, uma exposição de perguntas e constante busca de respostas.

A Religião, natureza humana, os paradoxos e as contradições sempre juntos e explorados a cada página. Temas sempre abordados mas nunca repetitivos por terem tanto para desenvolver.

Desta vez não me senti tentada a guardar e sublinhar passagens, até porque todo o livro é especial, e corria o risco de não fazer mais nada. Preferi aproveitar a leitura sem paragens, sem ter medo de perder nada, consciente da dificuldade de reter tudo mas confiante na selecção natural do meu interesse.

E agora que pensei em falar um pouco sobre o enredo deste livro dou por mim perdida no meio de tantas memórias boas, tantas frases simples mas cheias de tudo, e várias personagens únicas, distintas e tão diferentes, que as suas relações, de tão inusitadas, só podiam mesmo acontecer.

Rosa, a mulher fatal, apetecida pelos personagens masculinos, é a antítese do que se promovem ser as características mais atractivas numa mulher, se calhar a verdadeira atração reside na proximidade à terra e à natureza e não em manipulações da imagem feminina muitas vezes tão distantes da realidade. Rosa é uma boa netinha, que quer realizar o sonho da avó de conhecer Jerusalém. Tudo faz para ver a avó feliz, mesmo que tenha de se socorrer de mentiras e artifícios cómicos, que sem dúvida conferem ao livro uma componente hilariante, mas que me fizeram pensar em como uma só pessoa pode promover o bem através de meios considerados errados. Natureza humana. Como podemos todos ser maus mesmo quando queremos ser bons.

Rosa é apenas um exemplo que aqui deixo pois as suas acções são, a meu ver, o principal fio condutor desta história. As atitudes de Rosa geram outros acontecimentos. Alguns hilariantes, outros contraditórios e inesperados, mas sempre perfeitamente justificados.

As minhas palavras estarão sempre longe da excelência deste livro, como possivelmente de qualquer livro de Afonso Cruz. Fica a divulgação do escritor e a tentativa (claramente insuficiente) de elevar a sua obra.

Afonso Cruz esteve na Roda dos Livros no último sábado. Um dia inesquecível para os seus elementos. Aqui.

Lido através da Roda dos Livros – Livros em Movimento.

Sinopse

“Uma pequena aldeia alentejana transforma-se em Jerusalém graças ao amor de uma rapariga pela sua avó, cujo maior desejo é visitar a Terra Santa. Um professor paralelo a si mesmo, uma inglesa que dorme dentro de uma baleia, uma rapariga que lê westerns e crê que a sua mãe foi substituída pela própria Virgem Maria, são algumas das personagens que compõem uma história comovente e irónica sobre a capacidade de transformação do ser humano e sobre as coisas fundamentais da vida: o amor, o sacrifício, e a cerveja.”

Alfaguara, 2012

Dezembro 15, 2013

Os Anjos Morrem das Nossas Feridas - Yasmina Khadra - Opinião

 

Sempre gostei que me contassem histórias, por isso gosto tanto de ler. “Os Anjos Morrem das Nossas Feridas” é um excelente romance e Yasmina Khadra é, pelo menos neste livro, o único que li dele, um brilhante contador de histórias.

Uma escrita cheia de detalhes mas sem recorrer a artifícios desnecessários, uma narrativa linear como o decorrer do tempo. Assim conhecemos Turambo e o seu percurso pela vida. A miséria de uma infância na Argélia até ao topo da carreira de lutador de boxe nos anos 30, Turambo aprende duras lições com as suas fraquezas enquanto muito jovem, mas não menos duros são os ensinamentos depois de atingir fama e sucesso.

A natureza humana no seu melhor e o reverso quando o dinheiro e o poder se atravessam no caminho da amizade e do amor. A ingenuidade de Turambo não permite que a experiência lhe crie defesas, a sua carreira proporciona riqueza e estatuto a quem o rodeia mas pouco acrescenta à sua existência infeliz. Chegado ao fim, aprende a mais dura lição quando já nada pode fazer com esse ensinamento.

Um livro bonito mas duro, retrato de vidas sinuosas, de miséria, vícios e traições. Uma personagem principal de quem é fácil gostar e com quem o leitor se envolve, defende e quer proteger. Um final duro e injusto mas que convence completamente pela sua verosimilhança.

O sonho é o tutor do pobre - e o seu carrasco. Pega-nos na mão e passeia-nos por mil promessas a seu bel-prazer, até nos largar quando muito bem entende e lhe apetece. É um manhoso, o sonho, um psicólogo astuto: convence-nos a aceitar os nossos sentimentos como quem toma à letra a palavra de um mentiroso, mas assim que lhe confiamos o coração e o espírito, abandona-nos de repente a meio de uma derrota, e damos por nós sozinhos, com a cabeça cheia de vento e um vazio no peito – nada mais nos resta fazer senão chorar.” (Pág. 56).

Sinopse

“Dizia chamar-se Turambo, o nome da sua miserável terra na Argélia, onde nascera nos anos de 1920. Tinha uma candura desarmante e um gancho esquerdo imbatível. Frequentou o mundo dos ocidentais, conheceu a glória, o dinheiro, o frenesim dos ringues de boxe, e todavia nenhum troféu movia mais a sua alma do que o olhar de uma mulher. De Nora a Louise, de Aïda a Irène, procurava um sentido para a sua vida. Mas num mundo onde a cupidez e o êxito reinam como senhores absolutos, o amor corre por vezes grandes riscos.

Através de uma extraordinária evocação da Argélia de entre guerras, Yasmina Khadra apresenta, mais do que uma educação sentimental, o percurso obstinado de ascensão e queda de um jovem prodígio, adorado pelas multidões, fiel aos seus princípios, e que apenas queria ser senhor do seu destino.”

Bizâncio, 2013

Dezembro 14, 2013

Valter Hugo Mãe em digressão de apresentação de "A Desumanização"

 

Depois de nos dois últimos meses ter viajado intensamente pelo estrangeiro, Valter Hugo Mãe vai finalmente apresentar A Desumanização em várias cidades do país.

COIMBRA – 18 DEZEMBRO, 21:30 – GALERIA SANTA CLARA - António Pedro Pita conversa com Valter Hugo Mãe
LISBOA – 19 DEZEMBRO, 18:30 – FNAC CHIADO - Fernando Dacosta conversa com Valter Hugo Mãe

PÓVOA DE VARZIM – 20 DEZEMBRO, 21:30 – AUDITÓRIO MUNIC. - Música: Valter Lobo
MATOSINHOS – 21 DEZEMBRO, 17:00 – FNAC NORTESHOPPING - Albuquerque Mendes conversa com Valter Hugo Mãe
GAIA – 21 DEZEMBRO, 21:00 – FNAC GAIASHOPPING - Sandra Fernandes Pereira conversa com Valter Hugo Mãe

Dezembro 12, 2013

Amanhã, apresentação de "Linhas Invisíveis", de J. Pedro Baltasar

 

Não sentiu nada.

O tiro entrou como um fragmento ínfimo no espaço-tempo, sem ruído, suavemente, como tudo o que rodeava Robert Brannagh nesse instante. Num milionésimo de segundo, abriu um pequeno círculo de precisão cirúrgica no vidro frontal da viatura e atravessou a cabeça de Brannagh, saindo pelo vidro lateral traseiro do lado esquerdo, indo alojar-se cravado algures no solo, um tudo nada mais adiante. O sangue espirrou nas mais variadas direcções e o carro, desgovernado, foi embater devagar, – ironia das ironias –, de encontro a uma macieira.

Uma maçã desprendeu-se de um ramo e veio cair sobre o tejadilho do carro, deslizando, até cair, precipitando-se na poça de sangue que corria da porta entreaberta por onde o corpo de Robert Brannagh tombara.

Cumpria assim a maçã, a lei terceira que uns séculos atrás, Isaac Newton enunciara: TUDO O QUE SOBE, TEM DE CAIR!

Dezembro 10, 2013

"Linhas Invisíveis", novo livro de J. Pedro Baltasar é apresentado esta semana

 

Assim como o bater das asas de uma borboleta pode

provocar uma tempestade do outro lado do Mundo, da

mesma forma, um movimento nosso... um simples gesto,

pode provocar uma consequência imprevisível.

Um passo dado a mais e podes ver-te do outro lado

de ti, sem saberes como voltar.

Porque afinal...

... tudo na vida se encontra ligado.

Todos estamos ligados.

Por linhas invisíveis.

 

Há uma linha que nos une a todos.
Paira sobre nós suspensa e inocente.
Observa-nos... Estuda-nos.
Se puxada por uns, pode provocar a queda de outros. Porque de uma forma ou de outra, como num tabuleiro de xadrez, todas as nossas vidas se cruzam. Todos os nossos actos.
Há uma outra linha, porém, mais ténue e dissimulada, que marca a fronteira entre o bem e o mal.
Poderemos nós,... qualquer um de nós atravessá-la e, passar de pacato e inofensivo cidadão a... assassino implacável?
Que razões nos podem levar a fazê-lo?
O ódio e a vingança?
O sofrimento?


Apresentação de Linhas Invisíveis na próxima sexta-feira, 13 de Dezembro.

Dezembro 07, 2013

Enciclopédia da Estória Universal, Recolha de Alexandria - Afonso Cruz

 

Refletir através de pequenas estórias apresentadas como verdades enciclopédicas. Um projecto que requer todo um trabalho de construção, uma estrutura sólida que assenta na criatividade e na imaginação. Um trabalho genial. Possivelmente o livro do Afonso Cruz que mais gostei de ler até agora.

Mais do que saber escrever, mais do que ter talento para criar palcos, personagens e argumentos, impressiona-me o criar de mundos. E Afonso Cruz como que criou o seu próprio mundo, com todas as explicações de coisas em que nunca pensámos, ou que já pensámos mas nunca desta forma. Quem se iria lembrar de medir a sorte ou os pecados considerando-as medições cientificamente comprovadas? É como chegar à verdade através de um processo de alucinação, com entrar num túnel onde se olha para tudo de outra forma e se descobrem coisas fantásticas.

Deixei-me levar por uma leitura excecional, que me surpreendeu a cada página e me levou a reflectir sobre temas sérios através de exemplos quase infantis. Uma brincadeira que quero repetir, um livro que já é para mim um marco e que prevejo reler infinitas vezes.

Um conjunto de pensamentos e fragmentos muitas vezes contraditórios e cujo sentido só nos atinge umas páginas mais à frente; um exercício extraordinário para as cabeças que, cansadas de rotinas, procuram algo diferente dos dias (quase) todos iguais. Pois que viver numa era em que se produz e vende tudo tende a deixar o cérebro demasiado tempo em descanso.

Não tenho mais adjectivos para tamanha genialidade. Vou ali procurar alguns na Enciclopédia.

“No futuro

Iremos parar durante

Um minuto todos os dias,

Interromper o que estivermos a fazer, de repente, a meio

De uma palavra, de uma passada,

De uma garfada. E, perfeitamente imóveis, veremos que o mundo

É uma cruz para quem o carrega

E um berlinde para quem o empurra.

Depois é só escolher.” (Pág. 24).

“Podem não existir livros a mais, mas existe tempo a menos.” (Pág. 68).

“O ócio não é o contrário de trabalho. A felicidade é que é o contrário de trabalho” (Pág.75).

“Existe uma doença oftálmica chamada poliopsia. Consistem em ver várias imagens do mesmo objecto. Quando a poliopsia ataca o cérebro, chamamos-lhe sabedoria: consiste em ver o mesmo objecto, mas de perspectivas diferentes, como se fosse visto por várias pessoas.” (Pág. 79).

“Os monges bibliofitas, por sua vez, consideravam todos os livros como seres viventes, tal como a própria biblioteca. Os livros têm uma das características fundamentais dos seres vivos: reproduzem-se (como qualquer bibliófilo sabe), quando não estamos a olhar para eles. Precisam de ser alimentados pela leitura ou acabarão por morrer inanes.” (Pág. 93).

Sinopse

“Este volume da Enciclopédia da Estória Universal, entre várias citações, curiosidades, mitos e anedotas orientais, inclui ainda entradas sobre monges que vivem pendurados em enormes prateleiras de livros e que nunca tocam no chão; diz-nos que Alice no País das Maravilhas nasceu de uma enxaqueca; conta história do sultão Osman III, que abominava música e mulheres; e narra episódios da vida de Umt Arslan, o governador otomano que tinha fama de comer leões. Num tom, por vezes solene, outras irónico, mas sempre lúdico, esta enciclopédia revela-nos toda a História que a História esqueceu e ignorou.”

Alfaguara, 2012

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